16 de dez. de 2004

Bush II

Bush II
As eleições norte-americanas confirmam que a democracia – apesar de ser o menos imperfeito dos regimes políticos – não está isenta de escolhas que podem levar ao poder perigosos demagogos

Ignacio Ramonet

A reeleição, no último dia 2 de novembro, de George W. Bush para a Presidência dos Estados Unidos constitui uma afronta ao espírito da democracia norte-americana, a mais antiga do mundo e, por isso mesmo, sua referência primordial. É evidente que, tecnicamente falando, não há – desta vez – o que reclamar. Ninguém pode contestar o caráter legítimo da votação. Usando de seus direitos, os eleitores escolheram segundo seus desejos1. Nem por isso esta eleição é menos inquietante, e até chocante. Confirma que a democracia – apesar de ser o menos imperfeito dos regimes políticos – não está isenta de escolhas que podem levar ao poder perigosos demagogos.

É realmente preocupante que Bush, conhecido por seu fundamentalismo religioso, por sua mediocridade intelectual e por sua incultura, tenha sido o candidato mais votado da história eleitoral norte-americana. Principalmente por ter enganado seu povo e mentido ao Congresso para conseguir autorização de conduzir uma “guerra preventiva” (não autorizada pela ONU) e invadir o Iraque; por ter incentivado um uso desproporcional de força, provocando a morte de milhares de civis iraquianos inocentes2; por ter ignorado a “ordem executiva” de 1976 do presidente Gerald Ford (ainda em vigor e que proíbe os serviços secretos de assassinarem dirigentes políticos estrangeiros) e ordenado a execução de supostos “terroristas3”; por ter violado as Convenções de Genebra sobre o tratamento de prisioneiros de guerra; por ter permitido a prática de tortura na prisão de Abu Ghraib e em outros centros de detenção secretos; e porque ressuscitou o espírito do macartismo, que consiste em considerar culpado qualquer cidadão que possa ser suspeito de manter vínculos com uma organização inimiga.

Plebiscito da ilegalidade?
Com um quadro de honra de tal maneira sinistro, qualquer outro dirigente seria declarado pouco recomendável e banido do mundo civilizado. Não George Bush que, além do mais – e enquanto presidente da única hiperpotência mundial – ocupa o lugar central do dispositivo político internacional.

Seu segundo mandato promete dar continuidade ao anterior. E as duas primeiras nomeações de ministros confirmam que Bush interpreta sua vitória eleitoral como um plebiscito à sua política. A escolha de Alberto Gonzales para o Departamento de Justiça, por exemplo, constitui uma resposta de desprezo a todos os que criticam a tortura em prisioneiros acusados de terrorismo. Isso porque, na condição de assessor jurídico do presidente, o próprio Gonzales foi o autor dos dispositivos legais que permitiram contornar as Convenções de Genebra – qualificando de “inimigos combatentes” os prisioneiros das guerras do Afeganistão e do Iraque – e da criação da base de Gunatánamo. Contrariando a legislação norte-americana e os tratados internacionais, Gonzales não hesitou em suspender a proibição de que fossem exercidas “pressões físicas” sobre esses prisioneiros sob o pretexto de que “na condução da guerra, a autoridade do presidente é total”.

Limites do instrumento militar
Quanto à nomeação de Condoleezza Rice para o Departamento de Estado, é impossível não ver na medida uma reivindicação do unilateralismo puro e duro defendido pelos republicanos autoritários do círculo presidencial e que parecem confirmar novas ameaças contra o Irã.

No entanto, a incapacidade das forças armadas se imporem no Iraque contra os insurrectos prova os limites do instrumento militar. Constatação que também se pode fazer em Israel, no momento em que desaparece Yasser Arafat, o general Ariel Sharon, principal aliado de Bush no Oriente Médio. O primeiro-ministro israelense constata que a capacidade de sofrimento dos palestinos continua superior à capacidade de destruição de seu exército. Saberia ele compreender as conseqüências disso?

Seria Bush capaz de acabar reconhecendo que os aspectos negativos da globalização (pobres cada vez mais pobres, injustiças planetárias, rivalidades regionais, desequilíbrios climáticos etc.) podem degenerar em conflitos caso não se consiga uma mediação conjunta multilateral? Ou que uma potência não pode pretender impor a lei sozinha?