19 de dez. de 2002

Ouro aos bandidos



A perda de soberania monetária torna as economias periféricas mais expostas a choques externos



Uma amiga, de fé e militância petistas, perguntou, ao tomar conhecimento da formação do ministério de Lula: "Então, estamos entregando o ouro aos bandidos?" Rebati, de primeira: "Trata-se, senhora, de tentar reaver o tesouro que já passou às mãos dos renegados".



A turma de FHC - assim como a de Menem, Fujimori e outros menos votados - entregou o cofre aos meliantes da finança global: atrelou, sem dó nem piedade, os destinos da economia brasileira aos humores mercuriais dos capitais voadores. Enquanto a grana estrangeira era fácil e o dólar barato, a malta dos rega-bofes, durante o dia, enchia os bolsos na farra da arbitragem com as taxas de juros e, à noite, regalava-se nas saturnálias dos importados.



Na América Latina, as políticas de liberalização financeira e de ancoragem cambial, ademais de agravarem as condições de vida dos mais pobres, afetaram negativamente o crescimento econômico. No Brasil e, sobretudo na Argentina, a abertura financeira e a valorização cambial concorreram para inflar os passivos externos e a dívida pública. Promoveram, além disso distorções no investimento direto estrangeiro, dirigido primordialmente às privatizações dos serviços públicos e às aquisições de empresas locais nos setores não afetados pela concorrência externa.



O resultado foi a fragilização do balanço de pagamentos, a crescente imobilização da política fiscal e a subordinação da política monetária à alternância de otimismo e pessimismo nos mercados globais.



Hoje em dia, depois da sucessão de crises financeiras que desabaram sobre os ditos emergentes, a literatura acadêmica americana adotou como um dos temas preferidos a discussão sobre os riscos e conseqüências do endividamento em moeda forte para economias de moeda não-conversível. Quem quiser conferir, deve acessar, por exemplo, o sítio www.nber.com, onde são publicados os artigos dos mesmos luminares que, no início dos 90, recomendavam a abertura financeira como a panacéia universal.



Em um de seus últimos artigos, o economista Barry Eichengreen procura demonstrar que, assim como no padrão ouro clássico, nos novos tempos da finança globalizada há uma a forte tendência à ancoragem das moedas nacionais à moeda central. As algemas douradas foram sucedidas pelas cadeias verdes. Observamos, na periferia, tentativas de alinhamento completo - como foi o caso da desditosa Argentina ou da aventura atual do Equador dolarizado - e casos de alinhamento parcial (soft peg) em outros países, como o Brasil.



Para fugir às agruras da hiperinflação renunciaram à soberania monetária e entregaram as funções de administração do crédito, de provedor de liquidez ao sistema bancário e de emprestador de última instância ao Federal Reserve. Trata-se da renúncia, total ou parcial, à política monetária.



A perda de soberania monetária torna as economias periféricas mais expostas a choques externos, diante da inconversibilidade de suas moedas e da fragilidade de seus sistemas financeiros e fiscais. As ondas de otimismo e pessimismo que atravessam os mercados financeiros "globalizados" geram ciclos relativamente curtos de endividamento externo e de valorização de ativos (entre eles o câmbio), seguidos de devastadoras crises cambiais. As agruras da hiperinflação foram substituídas pelos inconvenientes da maior volatilidade do produto e do emprego.



Alguns países tentaram escapar da coerção cambial - como o Brasil - adotando o câmbio flutuante. A âncora nominal, neste caso, fica por conta do regime de metas de inflação. A experiência recente demonstra, no entanto, que a dependência excessiva do financiamento externo engendra momentos de forte instabilidade cambial, comprometendo cumprimento das metas anunciadas e determinando um crescimento medíocre da economia.



A abertura e a descompressão financeiras nos países da periferia inverteram as determinações do balanço de pagamentos. Diante dos movimentos especulativos e de arbitragem das massas de capital monetário, os países da periferia - dotados de moedas inconversíveis, com desprezível participação nas transações internacionais - ficam à mercê de processos que não controlam: primeiro, a valorização da moeda local, o endividamento externo excessivo, as operações de esterilização dos efeitos monetários da expansão das reservas (explosão da dívida pública), os déficits insustentáveis em conta corrente; depois, as desvalorizações "exageradas", os ajustamentos penosos do balanço de pagamentos, a inflação e, finalmente, a ameaça de insolvência dos devedores em moeda estrangeira, públicos ou privados, geralmente com graves repercussões sobre o sistema bancário.



Submeter um país de moeda fraca e sem reputação aos azares da abertura financeira, significa correr um risco: dois preços cruciais da economia - a taxa de câmbio e a taxa de juros - não se movem na direção prevista pelas hipóteses convencionais. Nos períodos de retração da liquidez internacional, os administradores nativos ficam na dependência do "retorno da confiança". Se ela não voltar, cantaria o saudoso Nelson Gonçalves, há que amargar o recrudescimento da inflação - promovido pelas ondas de desvalorização cambial - e agüentar a barra dos superávits fiscais e dos juros elevados.



O Banco Central não recupera, portanto, a almejada a liberdade para mover a taxa de juros, de modo a permitir que a economia nacional possa evoluir num ambiente favorável à expansão do crédito, ao investimento, ao endividamento - em moeda local - das famílias e das empresas.



Tudo indica que, na atual desordem global, só escapam destas desgraças os países que entenderam a lógica profunda das políticas mercantilistas. A ordem é gerar alentados superávits comerciais e acumular reservas não emprestadas em moeda forte, isto é, concentrar poder de dissuasão para abortar as tentativas dos possuidores de riqueza de especular contra a moeda nacional.



Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo , ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às quintas-feiras. E-mail: BelluzzoP@aol.com




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