Desafios do jornalismo
CARLOS ALBERTO DI FRANCO
As fraudes praticadas por jornalistas do The New York Times continuam dando o que falar. Autor do mais famoso livro sobre a história do jornal, Gay Talese vê importantes problemas a partir da crise que atingiu um dos ícones do jornalismo mundial. Embora faça uma vibrante defesa do Times, uma instituição que está no negócio há mais de cem anos, Talese, em entrevista à Folha de S. Paulo, põe o dedo em algumas chagas que, no fundo, não são exclusividade do jornal americano. Elas ameaçam, de fato, a credibilidade da própria imprensa. Não fazemos matéria
direito, porque a reportagem se tornou muito tática, confiando em e-mail, telefones, gravações. Não é cara a cara. Quando eu era repórter, nunca usava o telefone. Queria ver o rosto das pessoas. Os dois editores não viam a cara do repórter que eles contrataram. E as reclamações de editores de que Jayson Blair deveria parar de escrever foram feitas por e-mail. Isso é muita tecnologia no jornalismo. Não se anda na rua, Não se pega o metrô ou um ônibus, um avião, Não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se Está conversando, conclui Talese. Falta de qualidade e deslizes éticos têm conseqüências. Produzem, a médio ou longo prazo, cicatrizes na credibilidade.
Um amigo gozador costuma dizer-me que a expressão jornalismo de qualidade é contradit?ria em si mesma. Outro dia, quis exemplificar-me esta sua opinião. Boa parte do noticiário de política dizia Não tem informação. Está dominado pela fofoca e pelo espetáculo. Não tem o menor interesse para os leitores. Não resolve nada, Não questiona nada, Não melhora a vida das pessoas. O desinteresse crescente dos leitores com as páginas de política, por exemplo, (e o comentário do meu amigo é uma amostragem do que está passando pela cabeça
do consumidor de jornal), está em relação direta com o excesso de aspas, a falta de apuração, a crise da reportagem e
a substituição de matéria jornalística por transcrição rotineira de fitas.
O uso de grampos como material jornalístico virou, infelizmente, ferramenta de trabalho. A velha e boa reportagem foi sendo substituída por dossiê. É preciso ter cuidado, muito cuidado, com a fonte que voluntariamente procura o repórter. O grampeamento, além disso, continua sendo um delito. Independentemente das tentativas de minimizar a gravidade da sua prática, continuo achando que o melhor fim não justifica quaisquer meios. De uns tempos para cá, no entanto, o leitor passou a receber dossiês que, freqüentemente, Não se sustentam em pé. Como chegam, vão embora. Curiosamente, quem os publica Não se sente obrigado
a dar nenhuma satisfação ao leitor. Dossiê deveria ser ponto de partida, pauta. Entre nós, virou matéria para publicação. Entramos na era do jornalismo sem jornalistas, nos tempos da reportagem sem repórteres. Ficamos, todos (ou quase todos), fechados no nosso autismo, emparedados no ambiente rarefeito das redações.
Enquanto esperamos o próximo dossiê, tratamos de reproduzir declarações entre aspas, de repercutir frases vazias de políticos experientes na arte de manipular a imprensa. O jornalismo está virando show business. Espartilhados pelo mundo do espetáculo, repórteres Estão sendo empurrados para o incômodo papel de uma peça descartável na linha de montagem da ciranda do entretenimento. Urge combater as manifestações do jornalismo declaratório e assumir, com clareza e didatismo, a agenda do cidadão. É preciso cobrir com qualidade as quEstáes que influenciam o dia-a-dia das pessoas. É importante fixar a atenção da cobertura não mais nos políticos e em suas estratégias
de comunicação, mas nos problemas de que os cidadãos estão
reclamando.
Repórteres carentes de informação especializada e de documentação apropriada acabam sendo instrumentalizados pela fonte. Sobra declaração leviana, mas falta apuração rigorosa. A incompetência foge dos bancos de dados. Na falta da pergunta inteligente, a ditadura das aspas ocupa o lugar da informação. O jornalismo de registro, burocrático e insosso, é o resultado acabado de uma perversa patologia: o despreparo de repórteres e a obsessão de editores com o fechamento. Quando
editores não formam os seus repórteres; quando a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline; quando o planejamento é uma abstração; quando as pautas não nascem da vida real; quando não se olha nos olhos dos entrevistados, está na hora de repensar todo o processo.
A autocrítica interna deve, além disso, ser acompanhada por um firme propósito de transparência e de retificação dos nossos equívocos. Uma imprensa ética sabe reconhecer os seus erros. As palavras podem informar corretamente, denunciar situações injustas, cobrar soluções. Mas podem também esquartejar reputações, destruir patrimônios, desinformar. Confessar um erro de português ou uma troca de legendas é relativamente fácil.
Mas admitir a prática de atitudes de prejulgamento, de manipulação informativa ou de leviandade noticiosa exige coragem moral. Reconhecer o erro, limpa e abertamente, é o pré-requisito da qualidade e, por isso, um dos alicerces da credibilidade. Só assim conseguiremos que os leitores, cada vez mais seduzidos pelas facilidades oferecidas pela informação virtual, percebam que o jornal continua sendo útil, importante, um guia insubstituível para a navegação na vida real.
CARLOS ALBERTO DI FRANCO é diretor do Master em Jornalismo para Editores e professor de Ética Jornalística.