13 de out. de 2003

A ONU no Iraque
Flavio Hemold Macieira
Por sua personalidade e trajetória de funcionário internacional corajoso, carismático e realizador, Sérgio Vieira de Mello tinha assumido perante a sociedade brasileira, após seu trágico desaparecimento, a dimensão de figura histórica e modelo de conduta ética. A grandeza do personagem, entretanto, e o luto cumprido por seu desaparecimento não devem inibir a análise do quadro de circunstâncias que o levou ao Iraque. Neste momento, um dilema conceitual desafia a ONU: como preservar sua base de legitimação democrática e, por outro lado, alcançar uma nova capacidade operacional?

Conhecemos todos as imperfeições da ONU, que está longe de funcionar como verdadeira democracia mundial. Na prática, nem é democrática, já que privilegia um organismo de poder baseado em situações de fato (o Conselho de Segurança) sobre o organismo de representação universal (a Assembléia Geral), nem exerce de fato o poder supremo mundial, já que nunca esteve em condições de disciplinar a atuação das grandes potências. Mesmo sua capacidade de intervenção em crises de alcance regional apresenta limitações dramáticas, como o demonstraram os massacres de Ruanda ou de Srebrenica. Esses fatores têm dificultado historicamente o cumprimento de seus objetivos básicos. Não impedem, contudo, que continue a ser a expressão máxima do contrato ou “seguro coletivo” da comunidade internacional contra a barbárie.

Encontra-se a ONU numa encruzilhada. Atropelada pelo unilateralismo e reduzida, nos últimos tempos, a um papel legitimador de intervenções iniciadas e conduzidas por seus membros mais poderosos, corre o risco de seguir o destino da Liga das Nações e caducar. O fato de estar sendo chamada, no Iraque, uma vez mais, a dar seguimento a uma ação unilateralmente iniciada renova-lhe, no plano jurídico-conceitual, o dilema de legitimidade. No cenário de ação, identificada com os ocupantes, a organização passa a atrair o ódio dos grupos afastados do poder, e das demais facções nacionalistas. Essa é a engrenagem trágica que vitimou Sérgio Vieira de Mello.

A tragédia é rica em lições. A luta contra o terrorismo não é tarefa a ser conduzida isoladamente. Assim o comprova a intervenção no Iraque: decidida e iniciada por um ator poderoso e seus aliados imediatos, conduziu rapidamente a um cenário de impasse e violência crônica.

A decisão americana de solicitar às Nações Unidas que assumam papel de destaque na reconstrução iraquiana abre chance de correção de erros e desvios da intervenção. Contudo, a presença da ONU no contexto somente poderá ser considerada legítima se atender a certos requisitos essenciais: deve ser abonada por decisão internacional; deve prever a garantia de que a Organização não será descartada do comando dos esforços de paz após obter sucesso na estabilização do país; deve implicar o pressuposto de que assumirá a liderança e o planejamento do processo pacificador. E, ainda que essas condições sejam bem atendidas, o risco da missão não decresce.

A presença da ONU sucede a uma ação intrusiva unilateral conduzida sem economia de violência e desenvolve-se sobre campos de batalha ainda fumegantes e ensangüentados. Os cenários naturais em que ocorre apresentam características extremas (altas temperaturas, desertos, tempestades de areia), o que agrava a ausência de serviços públicos vitais. No plano político, as condicionantes não são mais favoráveis: a intervenção é realizada em país de longa tradição de violência, desperta sérias desconfianças regionais, e desenrola-se em ambiente de crescente tensão entre grupos étnicos e religiosos.

A quebra do impasse político requer a exploração, sem preconceito, de hipóteses de manobra e negociação não contempladas, até aqui, pelos planejadores. Pareceria recomendável, em primeiro lugar, abrir diálogo com as correntes moderadas do baathismo, e até com personalidades do antigo regime (várias delas sob custódia americana), para negociar um entendimento geral com o ex-partido único envolvendo deposição de armas e integração ao jogo democrático.

Em segundo lugar, pareceria urgente buscar-se o envolvimento da Liga Árabe nos esforços de pacificação. Recorde-se que, em processos de paz conduzidos pela ONU, atores com algum tipo de afinidade — histórica, étnica ou cultural — com o cenário a ser pacificado são, com freqüência, convocados a participar das negociações e execução da ação pacificadora. Um bom exemplo foi a atuação competente e valorosa de contingentes brasileiros na pacificação de Angola e Moçambique.

Manter os países árabes afastados das manobras que visam a redesenhar politicamente uma área central do mundo árabe implica impor-lhes humilhação grave e alimentar-lhes a desconfiança em relação a todo o processo de intervenção e seus condutores. Países como Egito, Síria ou Jordânia poderiam exibir, como credencial de atuação, um passado de afinidade fraternal com o Iraque (ainda que pontilhado, freqüentemente, de divergências com o regime baathista). Trariam, ao processo de paz, precioso aporte operacional, tanto pela facilidade de comunicação em língua árabe, como pelo conhecimento e compreensão dos costumes da sociedade iraquiana.

Em terceiro lugar, é preciso garantir, sob pena de comprometimento definitivo da moralidade da intervenção, que o controle do petróleo iraquiano seja mantido em mãos iraquianas — evitando-se a regressão a situações de uma era colonial que se julgava definitivamente encerrada.

Os próprios Estados Unidos parecem, a esta altura, convencidos de que a tentativa de substituírem-se às Nações Unidas, como juízes e administradores das crises internacionais, tende a gerar resultados incertos e incompletos, enormes cargas humanas e orçamentárias, e tremendo desgaste de imagem. Os percalços da ocupação, os sacrifícios de personalidades de valor e os episódios dramáticos que diariamente enlutam a população local e a coalizão ocupante devem servir de alerta e desencadear uma reflexão sobre a forma de prevenir futuros desastres, aumentar a eficiência da ONU como instituição e estrutura administrativa e aperfeiçoar os mecanismos onusianos de representação democrática.

Como bem o compreendia Sérgio Vieira de Mello, a atuação da ONU no quadro caótico de um Iraque sob intervenção constitui teste de importância fundamental para seu futuro. Um teste que a Organização está obrigada a superar com êxito, sob pena de esvaziamento operacional, perda de sentido de universalidade e de capacitação para intervir em cenários de crise. É o patrimônio político e democrático da sociedade internacional que está em jogo, pois a alternativa à atuação da ONU é a perigosa instalação de um vazio de direito — terreno propício a que prospere o empirismo voluntarista e temerário, de resultados incertos, incapaz de garantir a paz e a estabilidade do sistema internacional.


FLAVIO HEMOLD MACIEIRA é diplomata.

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