Citar é preciso, entender não é preciso
Sérgio Rodrigues - NO MÏNIMO
Sérgio Rodrigues - NO MÏNIMO
06.08.2004 Lula não está só. A frase que ele atribuiu esta semana a Chico Buarque em mancada que já nasce clássica – “navegar é preciso, viver não é preciso” – é uma das mais repetidas do Brasil quando se trata de embelezar o discurso com uma leve fumaça de “erudição” segura e testada, do tipo que não deixa ninguém se sentindo ignorante. Talvez perca apenas para os “quinze minutos de fama” de Andy Warhol, a citação preferida de nossa imprensa cultural. Ao contrário desta, porém, tem uma história controversa e quase tão velha quanto a cultura do Ocidente. Lula está em companhia numerosa também quando erra o seu autor.
Verdade que Chico Buarque foi uma originalidade do presidente, mas é comum ouvir que a frase “navegar é preciso, viver não é preciso” saiu da caneta de Caetano Veloso, que de fato a usou no estribilho de “Os argonautas”, bela e intrigante canção de 1969: “O barco, noite no teu tão bonito/ Sorriso solto, perdido/ Horizonte, madrugada”. No entanto, se recuarmos um pouco mais no tempo, encontraremos outro poeta por trás do verso de Caetano: Fernando Pessoa, que numa nota manuscrita publicada postumamente como introdução à sua obra poética – apareceu em livro pela primeira vez em 1960 – diz: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso; viver não é preciso’. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar”.
Foi até aí que chegou “O Globo” ao apontar o erro de Lula na edição de ontem, dia 5. O verso, segundo o jornal, não seria de Chico mas do homem dos heterônimos. Uma meia verdade que, além de não levar em conta que o texto do poeta português sequer foi escrito em versos, ignora que Pessoa situa explicitamente a frase no passado, embora com alguma imprecisão – quem seriam aqueles “navegadores antigos”? Seguindo um pouco mais longe nessa rota, vamos encontrar o verso que Lula atribui a Chico – e outros a Caetano ou Pessoa – cumprindo o glorioso papel de lema da Escola de Sagres, o centro intelectual de onde partiram as grandes navegações portuguesas. Fim da viagem?
Não tão depressa. Navegar ainda é preciso, e a todo pano, para chegar até a Antiguidade tardia em que Plutarco, o filósofo e historiador grego, homem do primeiro século da era cristã, escreveu suas “Vidas dos homens ilustres”. É ali, pelo menos em tese, que a frase que não é de Chico – nem de Caetano, nem de Pessoa, nem de D. Henrique – aparece por escrito pela primeira vez. Surge na boca do general grego Pompeu, o Grande, um dos biografados de Plutarco, como exortação a uma tripulação covarde que temia embarcar no navio enquanto grossa tempestade se armava no horizonte. Ou seja: também não foi Plutarco, propriamente, o criador da pérola. Caberia a Pompeu essa autoria? Talvez, mas mesmo assim resta uma dúvida razoável: e se o general, como Lula, também estivesse citando alguém?
Eis, claro, uma questão que não vai mudar os rumos da República, ainda que Lula tivesse bastante a ganhar com a leitura atenta de outro livro de Plutarco, o clássico “Da maneira de distinguir o bajulador do amigo”. Lançado no Brasil pela Martins Fontes – junto com “Como tirar proveito de seus inimigos”, que dá título ao volume – o pequeno tratado moral de Plutarco conta com capítulos sugestivos como Os riscos do amor-próprio, Perigo dos louvores que dão ao vício o nome da virtude, Devemos incluir-nos na crítica que dirigimos aos outros. Leitura altamente recomendável, como se vê – mas essa é outra história.
Por enquanto, que nos baste transformar o episódio menor num grande pretexto para refletir sobre este lema-paráfrase da nossa cultura massificada, fraturada e veloz: citar é preciso, entender não é preciso. Até o “Estado de S. Paulo”, o único dos grandes jornais a informar corretamente a seus leitores que a frase citada por Lula é de Pompeu, tropeça num dos mitos que cercam essa peça de erudição prêt-à-porter ao dizer que Fernando Pessoa explorou a ambigüidade de “preciso” em nossa língua – uma palavra que quer dizer “necessário”, mas também “exato”. Como mostra o trecho ali atrás, a ambigüidade passou longe das intenções do poeta português, embora provavelmente estivesse nos planos de Caetano.
Mesmo assim, o que a frase tem de ambíguo, a possibilidade que oferece de uma leitura alternativa e até certo ponto contrária – navegar é ciência exata, viver não é –, pode ajudar a explicar o sucesso que o “verso do Chico” faz entre nós.
Um comentário:
[i]Surge na boca do general grego Pompeu, o Grande, um dos biografados de Plutarco[/i]...
Amigo, perquisar é necessário...
[b]Pompeu foi um general [b]ROMANO[/b]
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