25 de abr. de 2003

Do monoteísmo à ética capitalista
Por Fernando Eichenberg, de Paris

Os judeus correspondem à imagem de usurários retida pela memória da História? Suas relações com o dinheiro foram especiais e singulares? Seu papel nas engrenagens do capitalismo foi específico? Eles aproveitaram as guerras e as crises para acumular fortunas? Ou, ao contrário, foram eles banqueiros, ourives, financiadores porque não tinham acesso a outras profissões? São eles, hoje, mestres da globalização ou seu maior adversário? As inúmeras indagações listadas por Jacques Attali são o leitmotiv de sua obra "Les Juifs, le Monde et l´Argent", com lançamento previsto para breve no Brasil pela Editora Futura.

Ao investigar a história econômica dos judeus, Attali procurou descobrir por que "os inventores do monoteísmo se encontraram em situação de fundar a ética do capitalismo". Sua tese é simples: o papel particular protagonizado pelos judeu no desenvolvimento da economia e das finanças foi uma imposição e não necessariamente uma escolha. Jesus prega a aproximação de Deus na mendicidade, diz Attali. Já para os judeus, a pobreza é intolerável e a riqueza não é um fim, mas um meio de servir a Deus. O autor invoca o caráter nômade do povo judeu como uma das justificativas ao seu apego às formas líquidas de riquezas, e as contingências da história, que, por um longo tempo, colocaram os judeus como os únicos a quem era autorizado emprestar dinheiro. Em mais de 600 páginas, Attali atravessa séculos a fim de desvendar o falso e o verdadeiro nesse "tema tabu", do qual, diz, os "judeus só têm razões de se orgulhar".

Personagem polimorfo da paisagem intelectual francesa, além de autor de dezenas de obras (do ensaio, passando pelo teatro ao romance), Attali exibe um currículo diversificado: conselheiro especial do presidente François Mitterrand durante dez anos, de maio de 1981 a abril de 1991; fundador e primeiro presidente do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Berd); criador da Planet Finance, organização de captação de "microcréditos" para países do Terceiro Mundo; ou presidente da ACA, escritório especializado em consultoria para governos de países em desenvolvimento da Africa, Asia, Europa do Leste e América Latina. Para falar sobre as "polêmicas e sulfúreas" relações dos judeus com o dinheiro, Jacques Attali recebeu a reportagem do Valor na sua ampla residência, nos subúrbios de Paris, pouco antes de, no mesmo dia, embarcar para o Brasil, em mais uma de suas viagens incluídas na agenda do Planet Finance.

Valor: No livro, o sr. contesta o "mito" dos judeus como um povo fascinado pelo dinheiro, um meio privilegiado de exercício de poder. A sua perspectiva é outra: o inventor do monoteísmo ajudou a fundar a ética do capitalismo.

Jacques Attali: Eu quis tentar compreender o papel que os judeus puderam ter na história do mundo em relação à economia. Não escrevi o livro para destruir qualquer tese que seja, mas para tentar compreender. Mas, tentando compreender, me dei conta de que o mito era inexato. Mas, no início, não havia um parti pris de minha parte. O inventor do monoteísmo foi bastante instrumental na implantação de valores fundadores da ética do capitalismo, principalmente no fato de que o dinheiro só tem sentido se é colocado à serviço de um projeto que o ultrapassa e se é um instrumento à serviço do bem-estar coletivo, e não do bem-estar individual. Tudo isso incluído num conjunto de regras, princípios, procedimentos, de modos de comportamento e práticas bastante numerosas.

Valor: O sr. coloca o 'Antigo Testamento' e o período bíblico como um momento essencial da civilização, pela substituição dos sacrifícios humanos por uma indenização monetária: "o dinheiro interrompe a violência".

Attali: Há isso e também a idéia fundadora do pensamento judeu da negação da Lei do Talião. Com freqüência, no pensamento cristão, se crê que a lei "olho por olho e dente por dente", que consiste em matar pela vingança, é judia. Na verdade, no texto bíblico há a idéia de que é preciso substituir o ato de violência por uma indenização monetária. A grande idéia fundadora judia é a de parar com o ciclo de violência, não opor a vingança à violência. O dinheiro, a lei do mercado, se torna um modo de pacificação e de civilização.

Valor: Quais são as influências do 'Talmud de Jerusalém', no século IV, e do texto da Babilônia, no século VI, nesse contexto?

Attali: Os textos do "Talmud" são exemplos de jurisprudência que tentam explicar em detalhes como aplicar esses grandes princípios na vida cotidiana: por que podemos aceitar os empréstimos a juros, uma vez que depois ele será proibido pelas outras religiões; por que podemos aceitar os empréstimos com juros entre judeus e não judeus; por que podemos aceitar a venda de terras e em que condições. Eles resumem muitos dos problemas da economia moderna, e precisam mesmo, em detalhes, as leis do trabalho, o uso das letras de câmbio, os limites do lucro com a noção de "preço justo", etc.

Valor: O "imposto de solidariedade", o "tsedaka", seria a primeira aparição do imposto sobre a renda?

Attali: O "tsedaka" é um tipo de imposto de renda, pois diz que toda pessoa deve, voluntariamente, destinar em torno de 20% de seus ganhos aos pobres. Mas não pagando ao Estado, mas dando, seja diretamente ou numa forma anônima, aos pobres. É um imposto de redistribuição. Foi o que inspirou o meu projeto de microcréditos do Planet Finance. Maimonide dizia que o grau mais elevado da caridade consiste não em dar dinheiro a alguém, mas em emprestar o bastante para que ele nunca mais tenha necessidade de pedir novamente. Os microcréditos são extamente isso: ajudar as pessoas a ter o suficiente para não ter de depender mais da caridade. Com Planet Finance tentamos fazer isso pelo mundo todo e também no Brasil.

Valor: Para o sr., a oposição fundamental das relações entre judeus e cristãos em relação ao dinheiro é a razão de séculos de intolerância.

Attali: É uma das fontes da intolerância. O cristianismo, de uma certa maneira, teve para certos cristãos a atitude de ingratidão, que consiste em lamentar que os judeus sejam os inventores do monoteísmo. Eles foram ingratos em relação aqueles que trouxeram Deus, pois Deus é uma conquista judia. Igualmente, na medida em que os cristianismo interditou o empréstimo com juros, eles foram ingratos em relação aqueles que lhe emprestaram, não Deus, mas dinheiro. Há essa dupla ingratidão, que conduziu, em certos casos, a comportamentos de hostilidade. Nem sempre, pois também há entre judeus e cristãos, ao longo da história, relações extremamente próximas.

Valor: Segundo o sr., em torno do ano mil, haveria cerca de 150 mil judeus na Europa e durante três séculos ele seriam os únicos a poderem emprestar dinheiro. Na Idade Média, associa-se todo judeu a um credor e todo cristão a um devedor. O sr. diz que a Igreja assimilou o financiador ao diabo, como o dealer que fornece droga.

Attali: Os judeus não são apenas financiadores na Idade Média. Há muito poucos judeus na Europa e bruscamente há uma demanda de crédito, que não existia antes, e os judeus têm o direito de atender essa demanda. Eles se tornaram os banqueiros da Europa. Pode-se dizer que eles deflagraram o capitalismo europeu. A idéia de associar aquele que empresta dinheiro ao diabo está vinculada, por exemplo, ao não reembolso dos empréstimos por parte dos cristãos.

Valor: O sr. refuta Max Weber e sua tese, segundo a qual, o protestantismo seria uma das principais fontes de desenvolvimento do capitalismo nos séculos XVIII e XIX.

Attali: A idéia segundo a qual o protestantismo está na origem do capitalismo é uma tese absurda. O capitalismo começou muito antes da existência do protestantismo, pois ele surgiu, no minímo, no século XII na Europa. É verdade que o protestantismo, reencontrando os valores judeus - a idéia de que o dinheiro não é maléfico -, é uma redescoberta formidável dos princípios do judaísmo.

Valor: A imagem do judeu usurário se perpetuou até hoje, mas a influência judia na economia e no mundo das finanças não seria mais a mesma. Os banqueiros judeus do século 19, nos Estados Unidos e Viena, deram lugar a artistas ou psicanalistas nas gerações seguintes, segundo o sr. afirma em seu livro.

Attali: Isso tudo acabou. Os judeus tiveram um papel importante, essencialmente, no século XII e, nos Estados Unidos, no século XIX. Mas, nos EUA, eles concorriam com os protestantes, e não estavam em situação dominante. Haviam bancos judeus, mas não apenas bancos judeus. A importância judia no mundo das finanças desapareceu completamente, primeiro, no século XIV, quando os cristãos começaram a ter o direito de atuar como financiadores. Ela reapareceu um pouco depois nos Estados Unidos durante cinqüenta anos, entre 1860 e 1910, e então desapareceu. Depois que deixaram os bancos, muitos judeus investiram no meio do espetáculo. Os grandes estúdios como Fox, MGM, Universal, Warner Brothers surgiram graças a empresários judeus. Mas isso também terminou. Como eles sofriam com essa acusação de dar muita atenção ao dinheiro, os judeus também se detestavam a si próprios, pois isso alimentava um ódio a si mesmo. E eles passaram a atuar no teatro, por exemplo. Viena era completamente judia no teatro. E também no caso da psicanálise. A psicanálise é fundada, em muito, no ódio ao dinheiro. Houve uma instalação de um processo crítico do uso do dinheiro pelos judeus, o que os levou às profissões artísticas.

Valor: Seu livro recebeu algumas críticas por apresentar uma "relação idílica" dos judeus com o dinheiro, esquecendo-se de que o dinheiro judeu também teria sido usado para financiar guerras.

Attali: Financiar guerras, não especialmente. Eu mesmo digo que os Rotschild fizeram fortuna com o financiamento da guerra da Inglaterra contra Napoleão. É verdade que todo financiamento da defesa das potências européias contra Napoleão foi financiada pelos Rotschild. Mas isso não é financiar guerras, é financiar a defesa contra um invasor.

Valor: O sr. coloca Spinoza como o primeiro grande pensador judeu da modernidade, apóstolo de um Deus universal; critica o anti-semitismo de Voltaire como um sub-produto de um anticristianismo, e assinala a assimilação de judaísmo e capitalismo por Marx, como os dois inimigos a serem combatidos.

Attali: Spinoza é o primeiro que começa a distingüir claramente essa questão e que pensa fora do pensamento religioso. É um pensamento livre, que considera que se pode pensar a liberdade independente dos textos religiosos. Ele atinge a idéia de que Deus está por tudo, é abstrato, não é o Deus das Escrituras. Voltaire tem um lado anti-semita e também um lado admirativo em relação ao que o povo judeu contribuiu para a História. Para Marx, o capitalismo nasceu do judaísmo, então, para destruir o capitalismo é preciso destruir o judaísmo. Esse texto dele é incrivelmente anti-semita, se inscreve, aliás, no pensamento alemão, e também num tipo de ódio de si mesmo. Os marxistas não gostam muito de citar esse texto de Marx.

Valor: No capítulo sobre o Brasil, o sr. escreve quem, em 1648, dos 12 mil habitantes europeus em solo brasileiro, haviam cerca de 1,4 mil judeus, a maioria deles instalada em Recife. O sr. cita uma carta da época do governador de Recife, Adriaen Lems, queixando-se à Companhia das Indias de que os judeus não permitiam aos não judeus prosperarem por exagerarem nos lucros obtidos com o comércio de escravos, que às vezes alcançava 300% por cabeça.

Attali: Os judeus têm um papel particular no Brasil, pois eles partiram para o Brasil seja para fugir da colonização ou para expulsar os espanhóis. Eles foram com os holandeses, mais tolerantes. Mas foram, infelizmente, pegos quando os espanhóis expulsarem os holandeses. Nessa parte holandesa do Brasil eles são refinadores de açúcar e utilizam muitos escravos, como todo mundo na época, não se trata de uma especialidade judia. Depois, eles partirão nos navios holandeses, e é assim que chegarão a Manhattan. Mas se eles impediram os não judeus de prosperar, como diz essa carta, é talvez também pelo fato de que eles tratavam melhor os escravos. Nesse caso, eles não ajudaram no desenvolvimento capitalista porque foram impedidos, foram expulsos com a partida dos holandeses. Eles estavam com Maurício de Nassau, depois se foram. Foi o Brasil que os expulsou.

Valor: O sr. coloca, igualmente, o problema da indentidade judia com a banalização do nomadismo imposta pela globalização.

Attali: O povo judeu, como todo povo, está em permanente dialética entre uma terra e uma identidade que não é somente uma terra. Acredito que se verá o povo judeu, por muito tempo, nessa dualidade entre Israel e a Diáspora. O fato de que há uma terra de Israel não é o fim do nomadismo. Seria o fim do nomadismo se fosse o fim da Diáspora. O problema da identidade é colocado para os judeus assim como para todo mundo. Digo que o Brasil, que tomo seguido como exemplo no meu livro "Dicionário do Século XXI" é o modelo do futuro do mundo. É um modelo de mestiçagem, de misturas, nas quais as identidades podem ser questionadas. A identidade judia é questionada. Diz-se seguidamente, por exemplo, que mais de 52% dos casamentos judeus são uniões mistas. Não é uma estatística especialmente judia, mas que é válida para todo mundo. Matematicamente, o povo judeu vai desaparecer num século, por fusão com outros povos. Mas, como já se disse tantas vezes que o povo judeu vai desaparecer, já não sabemos se será o caso.

Valor: Por que perdura até hoje essa idéia do judeu associado ao dinheiro?

Attali: Porque os mitos levam muito tempo para morrer. Meu livro não foi contestado por ninguém em nenhum fato. Espero que ele ajude a fazer desaparecer esse mito. Foi preciso dois mil anos para criá-lo e serão precisos alguns séculos para que ele desapareça.

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