Entrevista de Alecastro para Valor em 16 de abril
A estratégia da política externa brasileira foi montada quando a União Européia parecia fornecer um contrapeso consistente aos EUA. A guerra deixou em evidência que não há poder que confronte a hiperpotência americana.
Aos 57 anos, sendo que 25 deles no passados na França, o historiador Luiz Felipe de Alencastro , professor-catedrático da Universidade de Paris 4 (Sorbonne), defende uma reformulação na política externa brasileira. "A diplomacia é um domínio que não responde às regras de democracia; é regida por relações de forças onde um país como o nosso pesa pouco". Alencastro cobra ainda que o governo e o PT declarem "repúdio" às condenações que Cuba impôs à sua oposição democrática.
O historiador avalia positivamente as chances de sucesso do governo no Congresso. Para ele, nenhuma das reformas arriscam o presidente ao mesmo erro político do seu antecessor, a negociação de vida ou morte da emenda da reeleição. Sem uma barganha do porte daquela que viciou a base parlamentar do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; Lula, mesmo sem uma maioria consolidada, não está condenado a dificuldades intransponíveis no Congresso.
A seguir, a entrevista que Alencastro deu ao Valor por telefone de Paris.
Valor: O que mudou no governo Lula nesses primeiros cem dias?
Luiz Felipe Alencastro :O governo Lula afastou a bancarrota financeira que ia engolfar o país. Havia gente poderosa azarando o novo governo e a situação herdada era difícil. Na campanha eleitoral o próprio FHC afirmou que o Brasil podia virar uma outra Argentina, reconhecendo a vulnerabilidade do país após seus oito anos de governo. Além de tirar a crise da frente do país, a eleição de Lula deu lugar a uma mudança política importante. Pela primeira vez, a esquerda brasileira vence as eleições presidenciais. Considerando que Jango havia sido eleito vice-presidente e que sua presidência resultou da renúncia de Jânio, a eleição de Lula ganha um significado inédito. A democracia não consiste apenas na realização de eleições livres e no respeito às liberdades públicas. É preciso que as eleições possibilitem, em prazos mais ou menos regulares, uma mudança política capaz de levar a oposição ao governo. Nesse ponto, devemos reconhecer a parte que cabe a FHC como garantidor de uma transição presidencial exemplar.
Valor: A mudança é de conteúdo ou de estilo?
Alencastro :A mudança ocorre nos dois planos. Há um contato direto do presidente e do ministério com a realidade brasileira. O melhor no governo é que ele tem a cara do Brasil. E isso nunca aconteceu. Não é só porque Benedita, Marina e Gil se tornaram ministros. É também porque há um médico, ex-prefeito de uma cidade média, que é ministro da Fazenda, num país que viveu durante 40 anos sob a arrogância e a tirania de economistas sabichões. O fato de ele ter bom senso e administrar a economia com competência é algo que reforça a autoconfiança do país.
Valor: Qual a importância dessa cara do Brasil no governo?
Alencastro : Isso revigora os parâmetros democráticos no Brasil e no exterior. Uma parte da esquerda ocidental, condescendente com Fidel Castro, passou a criticá-lo duramente. Isso não se fazia porque parecia que a América Latina não conseguia implementar mudanças sociais no quadro constitucional. Daí a tolerância com um ditador que ao menos mudava a sociedade ou com o comandante Marcos, que não quer saber de eleições. Com a eleição de Lula, o eleitorado brasileiro mudou a perspectiva, dando um padrão democrático e civilizador para a América Latina. A imagem do comandante de boina, guerrilheiro de fuzil na mão, tornou-se anacrônica e depreciada. A nova imagem da esquerda latino-americana é o presidente eleito, sindicalista, dirigente partidário que está de terno e barba aparada. Isso também gera uma grande responsabilidade para o governo. Aliás, o governo e o PT deveriam ter declarado seu repúdio às condenações que Cuba inflingiu agora à sua oposição democrática. Fidel é um ditador tapado que quer morrer no poder, sem preparar a transição de seu regime, deixando seu povo exposto ao revanchismo dos anticastristas de Miami.
Valor: Como a imagem do governo reflete nas pesquisas?
Alencastro : A ação do presidente nos lugares críticos, nos assuntos postos em pauta nas viagens dentro e fora do país, tem tido grande importância. No presidencialismo, o presidente é chefe de Estado e chefe de governo, exercendo política de intervenção e de exemplaridade que Lula está praticando plenamente, como mostram as sondagens que dão uma apreciação positiva do governo. Isso posto, Lula desencadeou expectativas difíceis de administrar. Elas procedem de horizontes amplos, vão desde o MST até os professores e empresários médios, e concernem ainda gerações anteriores, dos que militaram por um socialismo democrático no Brasil e viam essas perspectivas frustradas desde a redemocratização de 1945. Antônio Cândido que, junto com Celso Furtado e outros intelectuais, manteve vivas essas esperanças, escreveu um artigo muito significativo sobre esse tema no dia seguinte à eleição de Lula.
Valor: FHC tinha uma moeda por trás da sua popularidade e Lula? Basta a personalização da figura do Lula para sustentá-la?
Fidel é um ditador tapado que quer morrer no poder, sem preparar a transição de seu regime
Alencastro : O real foi poderoso na conquista dos dois mandatos de FHC. Mas ele também foi um presidente popular e democrata. Contudo, Lula não reúne somente o carisma de um presidente com forte identificação popular. Lula é também o fundador do PT. Um partido democrático organizado nacionalmente, de baixo para cima - pela primeira vez na América Latina - com condições de responder a boa parte das expectativas criadas pela eleição, servindo como termômetro da sociedade. A presença do PT evitará o descolamento, que sempre houve, entre o presidente e as forças políticas que o elegeram. FHC disse em Paris que o PSDB nunca funcionou como um partido social democrata. Acho que o PT é um partido com esse potencial, inclusive com um nível de crítica ao próprio governo. O Brasil nunca teve uma experiência como essa.
Valor: A crítica diz respeito aos radicais do PT?
Alencastro : Os partidos se formavam por filiações pessoais. Não havia tendências organizadas. Quem estava descontente saía e fundava outro. O PT administra discussões internas há 20 anos. Isso existe desde sempre nos partidos das democracias ocidentais. O partido conservador britânico viu a oposição interna de John Major tomar o lugar de Margaret Thatcher. Agora o trabalhista Robin Cox criticou Blair e demitiu-se do ministério, armando o embrião de uma nova política para o Labour. Os congressos do Partido Socialista francês são sempre o teatro de debates antagônicos. Há um pouco de desconhecimento no Brasil desse tipo de debate intrapartidário, fundamental na democracia.
Valor: Como Lula deveria formar uma maioria sólida no Congresso?
Alencastro : Como estamos num presidencialismo de coalizão, conforme a definição de Sérgio Abranches, no qual o presidente não tem forçosamente a maioria no Congresso, há um complicador no poder e até um problema de recrutamento de quadros. Há cargos de segundo escalão que ainda não estão preenchidos. O que torna mais complexa a tarefa de administrar o país. Ainda assim penso que a situação mudou. O governo FHC queria votar a emenda da reeleição desde o dia que assumiu. Foi uma das razões que o travaram. O senador Montoro tinha proposto tirar a emenda da reeleição do Congresso e organizar um referendo sobre a matéria. Acho que teria sido uma solução mais democrática e muito melhor, inclusive para o governo FHC. Esse foi o erro político mais grave do governo anterior. Lula não tem nenhum problema desse tamanho rolando no Congresso.
Valor: Vai ser diferente a relação com o Congresso no governo Lula?
Alencastro : Sim. Há um certo consenso na classe política, mesmo dos políticos mais conservadores, de que José Dirceu é um grande quadro político. Nunca houve na Casa Civil alguém com essa experiência de negociação e de firmeza política como Dirceu. A comparação com o general Golbery, mentor da ditadura, é absurda e insultante para o eleitorado brasileiro. Esse artigo 192 da Constituição, que era motivo de piada, estava aí desde 1988. Os governos anteriores fingiam que ele não existia, agora está sendo solucionado. No presidencialismo não só as eleições que possibilitam as alianças. As eleições para senadores e governadores abrem a via para acordos e criam uma margem de manobra para a política presidencial. O fato do sistema ser pluripartidário tem inconvenientes, mas tem vantagens também. Os congressistas querem se reeleger e podem oferecer um apoio à política presidencial à medida que seus mandatos forem se aproximando do fim. Agora houve a mudança do vice-governador de Minas, saindo do PFL para o PL. É preciso gerir isso com bom senso. Collor criou aquele partido de aventureiros do qual hoje ninguém se lembra, e de repente estava todo mundo entrando no PRN. O poder presidencial atrai adesões que devem ser administradas para cumprir a vontade dos eleitores e reforçar a democracia.
Valor: As reformas que o governo está encaminhando no Congresso não são populares. Quais são os reflexos na popularidade de Lula?
Alencastro : Esse foi um dos mal entendidos da eleição. Há gente que pensa que dá para recorrer sempre ao Tesouro Nacional, independentemente das crises ocorrendo dentro e fora do país. Isso vem da herança paternalista, do trabalhismo varguista e brizolista. Enquanto a maioria dos aposentados sofre, uma minoria de privilegiados se beneficia de polpudas aposentadorias públicas que não tem paralelo nem nos países desenvolvidos. Vai ser preciso uma política de diálogo e informação da opinião pública. Nesse caso é possível ter uma aliança mais vasta que a própria esquerda. A reforma da Previdência já está desenhada há 30 anos nas curvas demográficas brasileiras, e resulta da queda de natalidade e da redução do trabalho formal. É uma tendência bem estabelecida nos países desenvolvidos. O gargalo da Previdência está sendo debatido pelos governos europeus, não importando a sua coloração política.
Valor: As expectativas já estão sendo frustradas?
Alencastro : Certamente. À medida que o governo se afastou do porto festivo que marcou a eleição de Lula, o tempo mudou e surgem as turbulências. Os pequenos e médios empresários, que votaram no Lula, reclamam dos patamares elevados em que os juros estão sendo mantidos. Há um expectativa frustrada no andamento da reforma agrária, da retomada do crescimento econômico e da implementação das políticas sociais.
Valor: O governo diz ao seu partido que esse é um momento de transição econômica para a mudança. Dá para acreditar nesse discurso?
Alencastro : As sondagens mostram que a opinião pública aceita essas explicações. Afinal, a guerra do Iraque complicou o quadro internacional. Falou-se que o preço do petróleo ia estourar. Agora, baixou de novo. Mas há outras surpresas externas. Começa a se ver que o Iraque está demolido e com uma dívida externa elevada. Pode ser que o alívio do preço do petróleo seja passageiro. Nos EUA, setores democratas estão achando que a guerra abortou a retomada econômica e contam vencer Bush na próxima eleição. Na Europa a situação é grave e há a ameaça da deflação. Penso que nos seis primeiros meses o governo pode argumentar a partir dos problemas internos que herdou e os problemas externos que apareceram. Mas depois vai começar a cobrança. Guardadas as devidas proporções foi assim que aconteceu com a prefeita Marta Suplicy.
Valor: E as críticas à execução dos programas sociais?
Alencastro : Fui colega do José Graziano, responsável pelo Fome Zero, na Unicamp. Ele foi um dos organizadores da Caravana da Cidadania, e merece todo o respeito. Mas acho que houve uma má-avaliação da implementação desse programa no topo da administração federal. É um dos setores em que a expectativa foi mais frustrada. Isso foi dito dentro do próprio governo. Essa é a cara do governo Lula dentro e fora do país. É o tipo de iniciativa que devia estar mais avançada, os impasses que atravessa comprometem o governo.
Valor: Como o governo tem se saído na política externa?
Alencastro : O engajamento simultâneo de Lula em Porto Alegre e em Davos foi muito bom. Ele posicionou-se como um mediador categorizado entre as duas metades do planeta. O fato de que seu nome tenha sido lembrado para o Prêmio Nobel da Paz confirma esse sucesso. Sua atividade na área internacional surpreendeu, já que era a praia do Fernando Henrique - o presidente poliglota, universitário de grande reputação que conhecia pessoalmente algumas lideranças internacionais. Parecia que Lula ia ter uma política externa muito mais discreta. E ao contrário, ele avançou bastante.
Valor: E interferência na Venezuela?
Alencastro : No começo do governo houve um entusiasmo que levou a um erro de cálculo na Venezuela. É certo que o Brasil ajudou a acalmar essa crise, mas a política externa está cheia de arapucas. Trata-se de um domínio que não responde às regras de democracia. A diplomacia é regida por relações de forças onde um país como o nosso pesa pouco. A guerra do Iraque deixou evidente a hiperpotência americana que atropela as organizações internacionais, a ONU e desarticula União Européia. É preciso reavaliar a estratégia da política externa brasileira, montada na altura em que a União Européia parecia fornecer um contrapeso consistente aos EUA. A guerra retardou essas perspectivas.
Valor: O não-apoio à invasão do Iraque pode estremecer as relações bilaterais entre Brasil e os EUA?
Alencastro : O fato de o Itamaraty ter sido a favor da ONU e de uma solução pacífica no Iraque foi positivo e corresponde à tradição de nossa política externa. Ir além disso teria sido temerário. O país ainda está muito vulnerável a uma sacudida dos EUA. Não tenhamos ilusões. Chirac só não sofreu uma retaliação imediata porque tem o escudo do euro. Se a França ainda tivesse o franco a história seria diferente. A moeda francesa teria sofrido uma desvalorização cambial e Paris se alinharia com Washington. Foi o que aconteceu na crise de Suez, em 1956, quando Eisenhower deixou a libra inglesa cair para forçar o primeiro ministro Anthony Eden retirar as tropas britânicas do Egito.
Valor: E a posição de fortalecer o Mercosul antes da Alca?
Alencastro : A médio prazo essa política parece comprometida. A crise de Argentina é tão grave que seu empenho na construção do Mercosul se tornou problemático. É difícil dizer isso, mas talvez a hora do Mercosul já tenha passado.
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