28 de abr. de 2003

Economista do PT faz críticas à proposta social de Palocci

Por Gabriela Athias

Depois que o ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda) divulgou, no último dia 10, o documento "Política Econômica e Reformas Estruturais", a economista Maria da Conceição Tavares, 73, perdeu a calma e mandou às favas o tom moderado que vinha usando diante da imprensa. "Quase tive um ataque quando li aquilo."

"Aquilo" é o documento em que a equipe econômica, contradizendo argumentos históricos do PT, atribuiu os problemas da economia brasileira à falta de ajuste fiscal. A sigla sempre bateu na tecla de que o déficit externo era a causa das mazelas do país.

Mas o que fez com que a economista, avessa a entrevistas, falasse à Folha foi o fato de o documento propor a focalização dos programas sociais -pela qual somente os realmente pobres seriam atendidos. Embora a expressão tenha sido usada de forma genérica, para Tavares, assessores de Palocci tentam introduzir no governo a idéia de acabar com a universalização dos benefícios sociais.


Folha - Por que o documento divulgado no último dia 10 pela equipe do ministro Palocci causou mal-estar entre os ministros da área social ao falar na focalização dos programas sociais?

Maria da Conceição Tavares - Causou mal estar em todo mundo. Não sou da área social e estou histérica. Temos políticas universais há mais de 30 anos. Somos o único país da América Latina que tem políticas universais. A focalização foi experimentada e empurrada pelo Banco Mundial na goela de todos os países e deu uma cagada. Não funciona nada. Desmontaram o sistema de saúde pública do Chile, que era o melhor da América Latina, desmontaram a Previdência e fizeram fundos de pensão e deu outra cagada, desmontaram o sistema de ensino público e foi a mesma coisa. Ainda fizeram a mesma coisa na Argentina. Chile e Argentina tinham historicamente os melhores programas de saúde e de educação e cobertura geral de políticas universais. Desmantelaram e obrigaram a fazer focalização.

Folha - Causa surpresa saber que num governo de esquerda há eco para esse tipo de proposta...

Tavares - O eco foi de raiva. Dentro do programa [divulgado pelo Ministério da Fazenda] há gente infiltrada que escreveu uma porcaria chamada Agenda Perdida [documento escrito pelos economista José Alexandre Scheinkman, Ricardo Paes de Barros e Marcos Lisboa], feita por um grupo de débeis mentais do Rio de Janeiro. Não são tão débeis mentais porque, além de fazer a Agenda, montaram um instituto, que é uma ONG, que recebe em torno de US$ 250 mil do Banco Mundial para fazer o tal estudo especial para focalizar. Assim como tivemos a desgraça de, no governo Fernando Henrique Cardoso, termos os economistas da PUC [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro] no programa econômico, desta vez temos também os da Fundação Getúlio Vargas, e não apenas infiltrados na área econômica. Esse Marcos Lisboa é um garoto semi-analfabeto que está encarregado de fazer política econômica, coisa que ele jamais fez na vida. Quiseram vender a Agenda para o PMDB, que não comprou, fizeram o mesmo com o Ciro [Gomes, candidato derrotado pelo PPS à Presidência e hoje ministro da Integração Nacional]. É um espanto que esse grupo de garotos espertos faça com dinheiro público e do Banco Mundial uma nova Agenda que proponha para o Brasil -o único país que tem políticas universais em saúde, no ensino público básico e no INSS, três redes universais que nunca ninguém conseguiu desmontar- a focalização dos programas sociais.

Folha - Apesar das críticas ao Marcos Lisboa, a política econômica do governo está sendo bem-sucedida...

Tavares - O Marcos Lisboa tem 38 anos e foi colega do meu filho na escola. Foi meu aluno, era um bom menino que adorava fazer modelos matemáticos e adora até hoje. Isso tem tanto a ver com política social quanto coisa nenhuma. É um direito do ministro levar quem quiser para a sua assessoria econômica, mas não é direito de um assessor palpitar sobre focalização e Agenda Perdida.

Folha - A sra. acredita que esse documento tenha sido feito à revelia do ministro Palocci?

Tavares - Eu não acho nada. Sei que quem escreveu o documento foi ele. O ministro Palocci escolheu para seu assessor econômico e do Tesouro [Joaquim Levy, ex-chefe da assessoria econômica do Ministério do Planejamento no governo FHC] quem bem entendeu. Não são pessoas da confiança do PT e não têm nada a ver com o partido. É gente de quem ninguém nunca tinha ouvido falar. O Marcos Lisboa não tem a menor experiência de política econômica. Já o ministro é um cara inteligente e tem experiência. Então pensei: ele colocou lá uns papalvos [patetas" sem importância nenhuma porque é esperto e não vai ouvir conversa nenhuma. Além disso, o ministro Palocci conversa com diversos economistas: do Delfim [Netto, deputado pelo PP -antigo PPB- de São Paulo e ex-ministro da Fazenda] aos tucanos e a nós. O ministro Palocci fala com todo mundo.

Folha - Defender a focalização dos programas sociais é ser liberal?

Tavares - Estive em São Paulo [depois da divulgação do documento" e tive de ouvir o dr. Delfim Netto defender a Constituinte de 1988, onde estão consagrados os direitos universais nas três áreas: saúde, assistência social e Previdência Social. Isso vinha sendo construído como políticas universais desde o tempo da ditadura, logo, não é um problema de ser conservador. É um problema de ser pateta ou de má-fé. E esse pessoal está tentando dar as rédeas da política social do governo. É evidente que os ministros da área social estão possessos, mas não vão armar uma briga com o ministro Palocci, a quem terei o prazer de, assim que for a Brasília, ir visitar para perguntar o que é aquilo. Como um documento da Fazenda fala sobre focalização?

Folha - Há algum outro aspecto que a sra. critica no documento?

Tavares - Ele desmente o diagnóstico de todos os economistas bons desse país que colocaram no estrangulamento externo, no aumento dos passivos externos que o doutor Fernando Henrique nos deixou, os problemas da economia. Diz que não é nada disso e que o problema na verdade é que o governo passado não fez o ajuste fiscal, que tal? Um garoto falando contra o ponto de vista de todos os grandes empresários e economistas como Delfim Netto, [Luiz Carlos] Mendonça de Barros, do José Serra, do Luiz Carlos Bresser Pereira, do Yoshiaki Nakano, de Campinas inteiro... Se há unanimidade no diagnóstico econômico é que temos um problema de estrangulamento externo. É isso que nos faz tolerar a habilidade política do ministro Palocci em contornar uma situação que, em setembro, era ruinosa.

Folha - Apesar do que a senhora fala de Marcos Lisboa, a taxa de câmbio recuou, a inflação dá sinais de queda...

Tavares - O garoto não faz política econômica. Quem faz é o ministro, o presidente do Banco Central, a diretoria do BC e aquele garoto do Tesouro [Joaquim Levy], e não aquele menino [Lisboa], que não tem a menor condição de fazer política econômica por não ter experiência. O que ele faz são os documentos, aquela babaquice que o Consenso de Washington quer que a gente aplique. Ele que faça os documentos que quiser. Diga-se de passagem que o diagnóstico [contido no documento "Política Econômica e Reformas Estruturais"] é a gargalhada do Delfim e de todo mundo porque revela a mais profunda ignorância...

Folha - A política econômica do ministro Palocci está correta?

Maria da Conceição - Até aqui, sim. Agora vai complicar por causa do câmbio.

Folha - O câmbio deve ser controlado?

Tavares - Não acho nada. Se nem o presidente do FED [banco central norte-americano], Alan Greenspan, sabe o que fazer com a taxa de câmbio dele, como, diabo, você quer que eu diga o que vai acontecer com o câmbio? Acho apenas que deixar entrar capital morte súbita [especulativo e de curto prazo], como diz o Delfim, ou capital pirata, os US$ 5 bilhões, ajuda a revalorizar. Mas depois teremos outro ataque, que foi o que aconteceu no governo Fernando Henrique. Nesse sentido, essa política econômica é a mesma que a anterior e não deu bom resultado. Política cambial é a coisa mais difícil porque o BC, não tendo reservas, não tem raio de manobra para fazer política cambial. Logo, eu não estou criticando. Apenas digo que, se essa política durar muito, como diz o próprio presidente Lula, é ruim porque prejudica a retomada do crescimento, a substituição de importações, as exportações. Não tenho atacado nem o ministro Palocci nem o presidente do BC. Agora, os débeis mentais que ele tem de assessor, se não escrevessem nada ou ficassem calados, eu também não atacaria.

Folha - Há pontos corretos no documento: até hoje não reduzimos a desigualdade de renda, e nossos programas sociais não combateram a pobreza.

Tavares - Não é verdade. A Previdência e a Loas [Lei Orgânica de Assistência Social, que prevê o pagamento de aposentadoria a deficientes e para idosos com mais de 65 anos com renda per capita da família até R$ 25] são os maiores programas de transferência de renda da América Latina. Move não apenas a economia das pequenas cidades do Nordeste, como as de São Paulo e as do Rio de Janeiro.

Folha - Isso não muda o fato de que hoje o Brasil investe mais nos velhos do que nas crianças.

Tavares - Isso é porque o programa de leite e de nutrição do SUS foi abandonado pelo governo Fernando Henrique.

Folha - Não há programa de leite que faça com que um menino que nasceu na periferia de São Paulo quebre o ciclo de pobreza da sua família...

Tavares - A redução da mortalidade infantil deve-se à distribuição de leite do governo José Sarney. Gozado: cai a mortalidade, aumenta a alfabetização, os velhos recebem renda e não está funcionando? As estatísticas sociais apresentadas no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social foram falsificadas. São essas coisas que fazem com que a sociedade diga, há uma década, que o serviço público não funciona, que o Estado é ineficiente e que tem de focalizar. Estou discutindo a universalização dos indicadores sociais. Para melhorar a distribuição de renda vai ser preciso fazer tudo: uma reforma tributária progressista, reforma agrária, que os donos de banco paguem imposto etc, etc.

(Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 21/04/2003)

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