31 de mar. de 2003

Somos todos fundamentalistas
por Arnaldo Bloch - O Globo 29/03/2003

Aguerra definitiva não será entre o bem e o mal, o ocidente e o oriente, o religioso e o secular. Será entre o fundamental e o fundamentalista.

O fundamental tem consistência. Não engole generalizações, nem é escravo da ideologia. Prefere aliar-se ao bom senso, à pluralidade, à História. E é inimigo mortal do obscurantismo e da mentira.

O fundamentalista baseia-se num ideal de pureza. Acredita na verdade absoluta. Sataniza o antagonista. Extermina a divergência.

Religioso ou não, o fundamentalista transforma tudo — arte, política, opinião, sexo — em divindade.

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O fundamentalismo é islâmico. É americano. É judaico. É cristão. É europeu. É de esquerda. É de direita. É econômico. É cibernético.

O fundamentalista diz: “Os EUA são o mal, o Islã é o bem”. Ou então “Os EUA são o bem, o Islã é o mal”. Diz que Chirac é paz ou que Chirac é verme. Diz que o negócio é cuspir a Coca-Cola, ou vomitar o foie gras .

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O fundamentalismo está em nosso dia-a-dia, é coisa rotineira. Todos somos ou fomos fundamentalistas. Quando quisemos vencer discussões na base do grito. Quando, com medo da dúvida e da ignorância, urinamos explicações definitivas sobre fatos que exigem reflexão e tempo.

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Fundamentalista é dizer que vanguarda é chato e tradição é legal, ou que vanguarda é legal e tradição é chato. É dizer que cubismo é feio e que belo é o clássico, partilhando, sem querer, do conceito hitlerista de arte degenerada, da busca de uma expressão superior através da exclusão do elemento dissonante.

Fundamentalista é dizer: “vou ao cinema para me divertir, não para pensar”, como se os dois canais não pudessem tocar no mesmo disco. É dizer “não vi e não gostei”.

Fundamentalista é o ofício de destruir uma obra com base em crenças, preconceitos e preferências, e não no significado da mesma dentro de um determinado contexto.

Fundamentalista é dizer “Hermeto Pascoal é soprador de chaleira”, com intuito de ocultar a boçalidade atrás de uma frase de efeito.

Aliás, frases de efeito são freqüentemente armas fundamentalistas nas mãos de narcisos compulsivos.

É comum a frase de efeito preceder ao próprio raciocínio do que ela significa. É mais rápido e efetivo na perspectiva do arrivismo cultural.

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Fundamentalista é o diretor de gravadora que diz: “música eu ouço em casa, aqui eu faço produto”, e os que seguem bovinamente este raciocínio. Fundamentalista é o produtor musical que, sodomizado pelo fetiche marquetológico, baseia suas escolhas numa noção abstrata e apressada do que “funciona” e do que “não funciona”.

Fundamentalista é dizer “funk é crime” ou “funk é denúncia”, sem perder um minuto na tentativa de traduzir e diferenciar os vários discursos entrelaçados na realidade complexa dos morros do Rio de Janeiro. É excluir antes de entender.

Fundamentalista é dizer, uma vez por mês, e com base em fluxos periódicos de masturbação intelectual, que surgiu um novo gênio aqui ou ali, como se gênios houvesse mais de dois ou três por século. Por conta desse vício, aliás, a palavra “genial” desvirtuou-se, vulgarizou-se, virou sinônimo da expressão eufórica, deslumbrada e autista, de qualquer opinião média.


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Fundamentalista é dizer que o negócio é sair matando. É igualar poder público e marginália, família e máfia. É dizer que os Direitos Humanos estão caducos.

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Fundamentalista é dizer que a psicanálise — teoria e prática — morreu, que foi um grande engano. É dizer que a genética (quando não a vontade divina) rege nossas ações.

Imaginar que o indivíduo é uma combinação de natureza e formação é penoso demais para os que desejam sepultar as sutilezas da condição humana, e caminhar mais uns passos na direção de um determinismo fascista em pleno século 21.

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Fundamental é estar consciente de que o fundamentalismo não é um fato externo, sobre o qual se lê no jornal, e que nos ameaça enquanto indivíduos inocentes. Combatê-lo é se dar conta de que ele nasce justamente no próprio indivíduo, cresce nas entranhas, escorre pelo canto da boca e se fortalece todo dia em casa, no botequim, no trabalho, nos nossos sonhos e nos nossos atos.

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