29 de mar. de 2004

O descaso dos governantes

Belíssimo artigo do Ignacio hoje no O Globo, vale ressaltar o ponto-chave do texto que é o de até que ponto as graves denúncias efetuadas contra a conduta policial têm fundamento, e não de quem se beneficia com elas. Outro é que as políticas de segurança pública desenvolvidas historicamente no Brasil tiveram SEMPRE como objetivo não a diminuição da violência, mas a sua contenção e isolamento geográfico nas áreas em que é considerada socialmente tolerável.
Divirtam-se!!
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O descaso dos governantes
por Ignacio Cano

Em maio de 2000 uma operação policial no Morro do Pavão-Pavãozinho provocou 5 mortos. Moradores revoltados denunciaram execuções sumárias e depredaram lojas e veículos. A comoção gerada pelo fato de que a violência tinha descido até o asfalto de Copacabana moveu o poder público a lançar uma experiência piloto denominada Grupo de Policiamento em Áreas Especiais (Gepae).

As políticas de segurança pública desenvolvidas historicamente no Brasil tiveram como objetivo não a diminuição da violência, mas a sua contenção e isolamento geográfico nas áreas em que é considerada socialmente tolerável — morros, invasões, etc. Assim, ficou consagrado o modelo da incursão policial relâmpago em favela, que pretendia acabar com o “inimigo” a ferro e fogo na vã esperança de que isto melhoraria a segurança dos moradores do asfalto. O perigo em que os tiroteios colocavam os moradores das favelas e a dramática ocorrência de vítimas por bala perdida eram considerados problemas secundários.

Nesse cenário, o Gepae era uma novidade que poderia contribuir à necessária mudança de paradigma da segurança pública no país. Já não se tratava mais de subir o morro atirando, mas de fornecer um policiamento permanente aos moradores dessas comunidades, cuja segurança era percebida como precursora da segurança dos residentes do asfalto em baixo. Os pilares do projeto eram a luta contra o porte e o uso de armas de fogo, a tentativa de afastar crianças do crime, e o rigor contra os desvios cometidos por policiais. Não se tratava de acabar de vez com a criminalidade, algo que está além do poder da polícia, mas de diminuir drasticamente o número de mortes, os tiroteios e a insegurança.

Embora o próprio poder público, aparentemente ignorante da transcendência de sua própria iniciativa, não investisse na seleção e formação dos policiais, o comprometimento dos primeiros comandantes do grupamento atingiu resultados significativos. Durante meses, os tiroteios e as vítimas fatais praticamente acabaram, melhorando a percepção de segurança na comunidade e no seu entorno. Um ponto central foi a relação de confiança entre o comandante e a comunidade, construída a partir do afastamento dos policiais que cometeram irregularidades. O tráfico e a criminalidade não acabaram, mas o saldo foi positivo.

O experimento foi bombardeado por políticos que disseram que ele representava uma atitude de tolerância com o crime organizado. Pessoas que moram em áreas da cidade em que a polícia certamente não está autorizada a entrar em confronto armado regular, durante o horário escolar, pediram a volta das velhas táticas de confronto armado.

Aos poucos, o descaso do poder público fez a iniciativa murchar. Os tiroteios voltaram e moradores acusaram os policiais de abusos. Por fim, o pesadelo voltou com o roteiro já conhecido. Operação policial, dias atrás: três mortos acusados pela polícia de serem traficantes, moradores denunciando execuções, vandalismo, o horror da cidade. O círculo teve um fechamento cruel. Os policiais que realizaram a operação eram membros do Gepae. O secretário já admitiu que um dos mortos era inocente. A melhor imagem do sarcasmo é uma polícia de tipo comunitário que usa toucas ninjas, encontradas nas dependências do Gepae.

Quanto aos protestos dos moradores, a resposta da Secretaria parece ser indiciá-los por associação ao tráfico. Essa atitude envolve um preconceito que reforça a estigmatização contra os favelados. Assim, baderneiro do asfalto é um simples baderneiro, mas baderneiro de favela é membro do crime organizado. O ônus da prova fica praticamente invertido: supõe-se que o favelado que protesta é membro do tráfico e caberá a ele provar o contrário.

Ninguém é ingênuo para não saber que o tráfico tem interesse nesses protestos, mas não é a questão central. O ponto-chave é até que ponto as graves denúncias efetuadas têm fundamento, não quem se beneficia com elas. E isso não pode ser desviado atribuindo os protestos ao tráfico. Manter essa posição é aprofundar o abismo entre as duas metades da cidade partida.

É óbvio que a polícia deve conter as manifestações violentas e também que os moradores de comunidades devem encontrar uma forma mais justa e eficiente de se defender do que destruir carros ou lojas. Mas a melhor maneira de evitar o vandalismo no futuro é investigar até o fundo o que aconteceu e investir em estratégias para mudar. Na verdade, muitos moradores de favela aprenderam até agora que o Estado só reage às reclamações na esteira de ônibus queimados. Cabe ao poder público mostrar que estão errados.

IGNACIO CANO é professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

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