29 de mar. de 2004

A premonição de Marcuse

A premonição de Marcuse

No Natal de 1970, convidado para fazer conferências na Universidade Hebraica de Jerusalém, Herbert Marcuse foi a Israel pela primeira vez. Essa foi também, para ele, a oportunidade de visitar o país e de se defrontar com a população local, árabe e israelense, sobre a questão palestina. Eis a entrevista, publicada no The Jerusalem Post de 2 de janeiro de 1972, conservada no Marcuse Archiv de Frankfurt e aqui reproduzida com a permissão de Peter Marcuse. Traduzida igualmente para o árabe, ela suscitou um intenso debate. A título de exemplo, Hamdi T. Kanaan, prefeito de Nablus de 1963 a 1969, escreveu-lhe nestes termos: "No que me diz respeito, vejo no senhor a primeira personalidade judaica que admite praticamente a grande injustiça cometida contra árabes palestinos com a criação de Israel e que, ao mesmo tempo, compreende total e logicamente as circunstâncias presentes e futuras nas quais Israel existe e existirá nesta região."

Michel Verrier,* enviado especial do LeMonde Diplomatique

Injustiça contra a população autóctone

Dados esses fatos, nossa discussão deve basear-se no reconhecimento de Israel como Estado soberano e na consideração das condições em que foi fundado, isto é, a injustiça que foi cometida contra a população árabe autóctone.

A criação do Estado de Israel foi um ato político, viabilizado pelas grandes potências porque se inseria na busca de seus próprios interesses. No período de implantação que precedeu a criação do Estado, e durante a própria criação, os direitos e os interesses da população autóctone não foram respeitados como deveriam ter sido.

A fundação do Estado judaico implicou, desde o início, a transferência do povo palestino, em parte à força, em parte sob pressão (econômica ou outra), em parte “voluntariamente”. A população árabe que ficou em Israel viu-se reduzida ao status econômico e social de cidadãos de segunda classe e isso apesar dos direitos que lhe foram reconhecidos. As diferenças nacionais, raciais e religiosas tornaram-se diferenças de classe: a velha contradição reapareceu na nova sociedade, agravada pela fusão entre os conflitos interno e externo.

Caráter precário da solução militar

Em todos esses pontos, as origens do Estado de Israel não são fundamentalmente diferentes daquelas de praticamente todos os Estados na história: criação através da conquista, ocupação e discriminação. (A aprovação da ONU não muda em nada a situação: esse aval ratificou de facto a conquista).

A partir do momento em que se aceita esse fato consumado e o objetivo histórico fundamental que o Estado de Israel fixou para si, coloca-se a questão de saber se esse Estado, tal como está constituído hoje e com a política que pratica atualmente, está em condições de atingir seu objetivo, existindo como uma sociedade de progresso que mantém relações em princípio pacíficas com seus vizinhos.

Responderei a essa questão referindo-me às fronteiras de Israel em 1948. Toda anexação, qualquer que seja sua forma, já deixaria supor, a meu ver, uma resposta negativa. Ela significaria que Israel não poderia assegurar sua sobrevivência senão enquanto uma fortaleza militar num vasto ambiente hostil, e que sua cultura material e intelectual se submeteria a exigências militares crescentes. O caráter perigosamente precário e efêmero de semelhante solução é demasiado evidente. Se uma superpotência (ou seus satélites) pode existir nessas condições durante um período prolongado, essa possibilidade está excluída para Israel em razão de sua dimensão geográfica e da política das superpotências em matéria de armamentos.

O status de Jerusalém
Na hipótese de se partir da situação atual, a primeira condição preliminar para uma solução é um tratado de paz com a República Árabe Unida; um tratado que compreenderia o reconhecimento do Estado de Israel e o livre acesso ao canal de Suez e ao golfo de Akaba e uma solução para a questão dos refugiados. Penso que é possível negociar tal tratado agora, e que a resposta do Egito à missão Jarring (15 de fevereiro de 1971) propõe uma base aceitável para negociações imediatas.

O Egito pede, antes de tudo, que Israel se comprometa a retirar suas forças armadas do Sinai e da faixa de Gaza. A criação de uma zona desmilitarizada, colocada sob a proteção da ONU, poderia proteger contra a eventualidade de um ataque árabe devastador, ao qual, segundo alguns observadores, essa retirada exporia Israel. O risco envolvido não me parece maior que o risco permanente de guerra que existe nas condições atuais. A potência mais forte pode se permitir as concessões mais importantes – e, de fato, Israel é essa potência.

O status de Jerusalém poderia aparecer como o obstáculo mais sério a um tratado de paz. Um sentimento religioso profundamente arraigado, com o qual os dirigentes jogam constantemente, faz com que seja inaceitável aos olhos dos árabes (e dos cristãos?) que Jerusalém seja a capital de um Estado judaico. Uma solução alternativa poderia consistir em colocar a cidade, uma vez reunificada (Leste e Oeste) sob administração e proteção internacional.

Política destinada ao fracasso

Em sua resposta, o Egito pede, por outro lado, uma “solução justa para o problema dos refugiados, em conformidade com as resoluções da ONU”. A formulação dessas resoluções (dentre as quais, a resolução 242 do Conselho de Segurança) é sujeita a interpretações e, nesse sentido, deve ser, ela própria, objeto de negociações. Eu evocaria apenas duas possibilidades (ou sua combinação), que foram sugeridas nas discussões que tive com personalidades judaicas e árabes.

1. Retorno a Israel dos palestinos que foram transferidos e desejam voltar. Essa possibilidade é limitada por antecipação, à medida que as terras árabes tornaram-se terras judaicas e os bens árabes, bens judaicos. Eis um outro fato histórico sobre o qual não se pode voltar atrás sem cometer um novo erro. Ele poderia ser atenuado, se esses palestinos se instalassem em terras ainda disponíveis e/ou desde que se lhes oferecessem equipamentos adequados e indenizações.

Essa solução é rejeitada oficialmente pelo motivo (correto em si) de que semelhante retorno transformaria rapidamente a maioria judaica numa minoria e, desse modo, aniquilaria o próprio objetivo da criação do Estado judaico. Ora, acredito que é precisamente a política visando a assegurar uma maioria permanente que é, intrinsecamente, destinada ao fracasso. A população judaica está condenada a permanecer uma minoria no seio do vasto conjunto formado pelas nações árabes, do qual ela não pode se separar indefinidamente sem cair em condições de gueto em maior escala. É evidente que Israel poderia manter uma maioria judaica por meio de uma política de imigração agressiva que, em contrapartida, fortaleceria constantemente o nacionalismo árabe. Mas Israel não poderá existir enquanto Estado de progresso se continuar a ver em seus vizinhos o Inimigo, o Erbfeind. Não é na existência de uma maioria fechada sobre si mesma, isolada e dominada pelo medo, que o povo judeu encontrará uma proteção duradoura, mas, sim, apenas na coexistência entre judeus e árabes enquanto cidadãos que se beneficiam dos mesmos direitos e liberdades. Essa coexistência só pode resultar de um longo processo englobando ensaios e erros, mas as condições preliminares para a realização dos primeiros passos existem agora.

A solução ótima

O fato é que o povo palestino vive há séculos no território em parte ocupado e governado por Israel hoje. Essas condições fazem de Israel uma potência invasora (mesmo em Israel), e o Movimento de Libertação da Palestina, um movimento de libertação nacional – por mais liberal que possa ser a potência invasora.

2) As aspirações nacionais do povo palestino poderiam ser satisfeitas pela criação de um Estado palestino nacional ao lado do Estado de Israel. Caberá ao povo palestino decidir, via plebiscito supervisionado pela ONU, se esse Estado deve ser uma entidade independente ou federada a Israel ou à Jordânia.

A solução ótima seria a coexistência entre israelenses e palestinos, judeus e árabes, em pé de igualdade dentro de uma federação socialista dos Estados do Oriente Médio. Essa perspectiva continua sendo uma utopia. As possibilidades evocadas acima continuam sendo soluções provisórias que se apresentam aqui e agora – rejeitá-las completamente poderia acarretar danos irreparáveis.

30 de dezembro de 1971

(Trad.: Iraci D. Poleti)

*Jornalista.

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