Viva Zapatero!
por BERILO VARGAS
Ninguém na imprensa americana discorre melhor do que Thomas Friedman sobre política internacional. É o meu guru, provavelmente o seu também, e como viaja. Sua rotina é a falta de rotina, vive correndo mundo para entender e explicar o mundo. Hoje Israel, amanhã a Síria, segunda-feira o Paquistão. O “New York Times” financia e, por onde anda, seu colunista itinerante é recebido por presidentes, magnatas, potentados. Só viaja de primeira classe, estranho seria se não o fizesse, mas foi visto em sua larga poltrona palitando os dentes com as unhas. Nada demais: para ser traído por cacoetes é só andar distraído.
E distraído tem andado Friedman quando usa o nobilíssimo espaço de sua coluna para defender o indefensável: o imbróglio do Iraque como frente vital na guerra de todos contra o terror. E dá-se o inesperado: o supra-sumo do jornalismo mundano, versado e conversado na linguagem rarefeita da política internacional e da alta diplomacia, está pensando com Bush e como Bush, e cometendo solecismo atrás de solecismo. Embaralha argumentos, mistura Saddam Hussein com Osama bin Laden, Eixo da Incompetência com Eixo do Apaziguamento, Segunda Guerra Mundial com segunda guerra do Iraque, derrota de José María Aznar com vitória da al-Qaeda.
Friedman vai além no seu virulento neobushismo e acusa os espanhóis — os eleitores e o chefe de governo que eles elegeram, José Luis Rodríguez Zapatero — de apaziguamento, de complacência com o terror. Para o fulgurante colunista, a Espanha cometeu o pecado mortal de reprovar Aznar e, indiretamente, a política externa de Bush. Que precipitado, e que injusto!
A invasão do Iraque veio depois de um ataque terrorista inédito na História, os atentados em Nova York e Washington. Mas a relação de causa e efeito entre o 11 de Setembro e o regime de Saddam é nenhuma; ou, por outra, é a mesma que existe entre o sujeito e o predicado numa frase de Bush. Bin Laden atacou os Estados Unidos; logo, os EUA precisam derrubar Saddam. Que disléxico! É a política do erro de concordância, do anacoluto, do non sequitur.
Na Espanha, as eleições foram precedidas de uma carnificina, transcorreram em clima de medo e aflição, e resultaram num castigo exemplar, numa advertência aos políticos que exploram cinicamente o pânico para conquistar votos. Por quê? Porque Aznar prevaricou. Nem mesmo a calamidade das bombas fez os eleitores espanhóis perderem o fio da meada, a clareza de raciocínio. A lógica das urnas foi a um tempo impecável e implacável. O que se rejeitou no pleito do dia 14 foi, sem dúvida, a política externa de Aznar. Mas, acima de tudo, condenou-se a mentira, a tapeação. Antes da matança de 11 de março, mesmo mantendo 1.300 soldados no Iraque contra a vontade da maioria, o partido do governo era o favorito — entre outras razões, pelo desassombro, pelo pulso firme com que Aznar peitara os separatistas bascos. Quem mandou mentir na reta de chegada?
É leviano e injusto acusar os espanhóis de aquiescência com o terror, ou de falta de hombredad . Os cidadãos comuns não se cansam de demonstrar maciçamente o seu asco por separatistas que estraçalham criancinhas. Dizem não de todas as formas. A uma onda de ataques do ETA, costumam responder com uma onda de manifestações. A cada novo atentado dos etarras a vida congela, o coração da Espanha pula uma batida: todo mundo interrompe o que está fazendo — seja uma reunião de cúpula, um passeio pela calçada, um papo de botequim — e observa um minuto de silêncio. Ninguém grita, ninguém xinga, ninguém faz discursos. É um jeito de dizer, coletivamente e sem desperdiçar palavras diante do inominável, que o país não quer, não aceita, não se acostuma.
Agora, quase 200 cadáveres depois, está claro que Espanha e EUA têm um inimigo comum. É o mesmo do resto do mundo civilizado: o terror apocalíptico que não tem fronteiras, que não reivindica, que está sorrateira e perfidamente empenhado apenas em destruir, aniquilar — numa palavra, aterrorizar — a qualquer hora, em toda parte. Hoje atende pelo nome de al-Qaeda, embora seja mais um método do que um grupo, um movimento.
Nas eleições, aturdidos pela tragédia, irritados, desconfiados, os espanhóis se pronunciaram especificamente sobre a guerra de Bush, Tony Blair e Aznar. Não lhes foi perguntado nas urnas se são a favor do uso da força para conter a al-Qaeda e ameaças do gênero, ou se acham suficiente fazer passeatas pela paz, vestidos de branco, carregando uma flor. Nem a eles, nem a Zapatero.
Por ora prevalece entre os espanhóis o entendimento de que a retirada do Iraque é um ato de bom senso. No más . Porque a frente mundial antiterror não passa por Basra e Bagdá; diferentemente do que alardeia Friedman, ali não se decide o futuro do Ocidente democrático. Ali se decide o futuro dos iraquianos, de Bush e de Blair. A Espanha que votou em clima de luto, mas lúcida, não merece o rótulo de pusilânime. Só o mereceria se houvesse um esforço global para arrostar Bin Laden — coordenado pela ONU, por amor à legitimidade — e povo e governo refugassem, como gazela assustada. Ainda não houve esse esforço, nem essa deserção.
Melhor que ninguém, Friedman, o analista cirúrgico, o comentarista sagaz, o andarilho bem informado, sabe que é assim. Mas acha que nós estamos distraídos, e acaba palitando os dentes em público. Como todo sofisticado, tem seus dias de novo-rico.
BERILO VARGAS é jornalista.
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