13 de mai. de 2003

Nas asas do saber
Por Renata Saraiva
publicado no Valor, seção EU& edição 590

Capaz de levar informações aos mais distantes pontos do mundo, em uma rede que não tem começo nem fim e num tempo cada vez menor, a internet provocou uma grande revolução na "era da informação", termo cunhado por diversos tipos de estudiosos para denominar os dias de hoje.

Mas uma outra revolução da informação e do conhecimento já tinha sido feita muito tempo antes que a mente humana pudesse imaginar o sistema binário dos computadores. Para o historiador da Universidade de Cambridge, Peter Burke, a invenção da imprensa com tipos móveis na Alemanha, em torno de 1450, alavancou uma das maiores possibilidades para o desenvolvimento do conhecimento humano: a reprodução de livros em inúmeros exemplares.

Daí seu livro "Uma História do Conhecimento - De Gutenberg a Diderot", que acaba de chegar ao Brasil pela Jorge Zahar (241 págs., R$ 36), abordar a história do conhecimento humano desde a era de Gutenberg, o inventor da tal prensa, até a publicação da "Enciclopédia Francesa", conjunto de volumes em que os franceses Denis Diderot e Jean Le Rond d'Alembert reuniram a informação disponível em sua época. A "Enciclopédia" virou a bíblia do Iluminismo, além de uma vívida ilustração da vida política e econômica do século XVIII.

Nos 300 anos que separaram Gutenberg de Diderot, Peter Burke encontrou diversas formas de conhecimento e transmissão de informações. Da evolução do funcionamento das universidades à disseminação de informações pela Europa por meio de atividades econômicas, como a da Bolsa de Valores de Amsterdã que, no século XVII, funcionava também como um manancial de notícias de diversas regiões do mundo.

Como bom representante da história social, Burke não se ateve apenas aos aspectos evolutivos do conhecimento, mas explorou todas as frentes por onde o conhecimento e as informações puderam circular na Europa da Idade Moderna: o espaço das cidades, a organização das bibliotecas e universidades, a manipulação das informações pela Igreja e pelo Estado, a mercantilização do conhecimento, as primeiras noções de propriedade intelectual. Está tudo ali, para servir de base, segundo o autor afirma na introdução, para uma compreensão do presente, ou seja, da "era da informação". Leia trechos da entrevista que Burke deu ao Valor, por telefone, de Cambridge.

Valor: Por que de Gutenberg a Diderot?

Peter Burke: Em primeiro lugar, porque não podemos falar em conhecimento sem falar em comunicação. A invenção da imprensa escrita provocou tamanha mudança na velocidade da comunicação, no número de pessoas alcançadas por ela, em forma de livros, na permanência dela, que esse foi um ponto de partida muito importante. Talvez haja uma controvérsia maior no que diz respeito à decisão de tomar como ponto de chegada a "Enciclopédia Francesa", de Diderot e d'Alembert. Eu me questionei também se não seria interessante chegar à Revolução Francesa. Mas a vantagem da "Enciclopédia" é que fica bem claro nesses inúmeros volumes o estado do conhecimento em meados do século XVIII. Procurei por longo tempo algum outro livro de importância equivalente para falar sobre isso e não consegui.

Valor: A "Enciclopédia Francesa" foi a consolidação do livro como veículo de conhecimento?

Burke: Sim. Claro que, como muitas outras coisas, a "Enciclopédia" tinha uma agenda política, assim como uma agenda cultural. Mas o uso de um livro tão volumoso como meio de difusão de conhecimento e encorajamento de visões políticas já demonstra a sua importância. Quero dizer que hoje, quando o livro, enquanto veículo, está tendo sua importância diminuída na cultura, precisamos nos lembrar de como era no passado.

Valor: Fala-se muito justamente no fim do livro por causa do mundo virtual. Qual sua opinião sobre isso?

Burke: Minha visão não é tão catastrófica. Acho que haverá um declínio da importância do livro. Mas não vejo apenas um simples declínio, mas também uma especialização de funções. Podemos falar em uma divisão do trabalho intelectual. Como historiador, devo lembrar o que aconteceu com o advento da imprensa escrita. Ela provocou um declínio da comunicação manuscrita. Mas foi relativo, pois logo os manuscritos passaram a ser usados com propósitos específicos. Por exemplo, para comunicações mais pessoais e secretas. Nunca desapareceram. Acredito que no mundo da internet ainda haverá lugar para os livros. As coisas vão se encaixar e eles encontrarão seu nicho particular.

Valor: Em seu livro, o sr. adotou como critério denominar "informação" aquilo que é "cru" e "conhecimento" o que já foi "cozido", "preparado". Para muitos sociólogos e economistas, assim como o sr. também enfatiza, estamos vivendo a "era da informação". O conhecimento está ameaçado pela era da informação?

Burke: Digamos que ela cria problemas. Especialmente se novas informações estão circulando muito rapidamente. Isso cria uma espécie de problema de digestão intelectual. É um problema no processo que eu chamo de "cozinhar" - transformar informação em conhecimento. Criticar, comparar essas informações, esse não é um processo rápido. É preciso aquietar-se. As pessoas precisam do lazer, de um tempo ininterrupto para realizar esse trabalho de processar. E hoje, você mal finalizou esse processo de digestão e já vem uma nova informação para ser processada.

Valor: O Cardeal Richelieu (primeiro-ministro de Luiz XIII) dizia que o conhecimento não devia ser transmitido às pessoas do povo para evitar que elas ficassem descontentes com sua posição social. Qual o papel da informação e do conhecimento na democracia de hoje?

Burke: Acho que as atitudes dos governos não mudaram muito desde os tempos de Richelieu. Só que eles não podem admitir isso. No início do século XVII, era possível para homens de Estado como Richelieu dizer que era perigoso que as pessoas comuns tivessem alguns tipos de conhecimento. Hoje, os homens de Estado têm que usar a linguagem da democracia. Mas, quando olhamos para o que eles fazem e a maneira como algumas informações são escondidas, e ainda o embaraço dos governos se alguns jornalistas são capazes de torná-las públicas, veremos que os governos não mudaram muito. O que mudou foi que, com a mídia, um número muito maior de pessoas, em todos os países, tem acesso à informação. Assim, é cada vez mais difícil esconder certas coisas. Mas eu acho bem difícil encontrar governantes que sejam realmente devotos da idéia de um governo aberto, o que Gorbachev chamava de "Glasnost", transparência.

Valor: O difícil, então, é saber a verdade sobre as informações que são veiculadas.

Burke: Claro. Isso sempre foi um problema. Você tem rumores, informações secretas que são vazadas e não sabe no que pode confiar ou não. Acho que o que se deve fazer é treinar as pessoas, nas escolas, ainda durante a infância, a serem críticas. Eu acho que essa é uma parte crucial de uma educação para a cidadania no século XXI. Ensinar um tipo de crítica construtiva, que é como alguém pode distingüir, no meio de tanta informação, qual é relevante e qual é mera propaganda.

Valor: Qual o papel dos intelectuais na sociedade de mercados?

Burke: Nossa sociedade tem menos espaço para eles do que no passado, mas talvez por isso mesmo eles sejam tão necessários. Eles são capazes de consertar os excessos da sociedade de consumo. Claro que algumas das pressões comerciais também corrigem alguns excessos dos intelectuais. Eu não estou dizendo que os intelectuais deveriam ditar as regras do mundo.

Valor: Hoje muitos intelectuais preferem estar próximos da mídia e são criticados, por isso, por seus colegas da academia, como se houvesse obrigatoriamente um cisma entre esses dois espaços. Como o sr. vê isso?

Burke: Os intelectuais deviam se orgulhar da oportunidade de falar para uma audiência bem maior do que a de seus alunos. Mas essa maravilhosa oportunidade é acompanhada de um perigo, uma tentação de dizer não o que eles, intelectuais, querem dizer, mas ajustar o que querem dizer não à demanda do público (acho que eles têm cabeça aberta o suficiente para evitar isso), mas à demanda das produções televisivas e da mídia. Se você diz coisas que o favorecem, isso o deixa mais famoso. Isso é o que os intelectuais têm que tentar evitar.

Valor: Nesse contexto, os detentores do conhecimento da economia, hoje, são mais importantes do que os filósofos, sociólogos, cientistas e historiadores, por exemplo?

Burke: Muito provavelmente. O que eu lamento. Mas não lamento por vivermos em um sistema plural. Acho que existem informações econômicas e esse conhecimento está tomando importância. Se falarmos de governantes, então haverá um controle de informações. Agora, os intelectuais, às vezes organizados em universidades, também tentam, de certa forma, manipular informações. Eu sentiria muito se algum grupo tivesse o monopólio. Acho que a melhor coisa para a República é ter diferentes grupos com diferentes atitudes. E algum tipo de balança entre eles. Meu único medo é que a balança tombe por causa de uma superficialização da informação.

Valor: No livro o sr. afirma categoricamente que a mercantização do conhecimento não é uma novidade. Quando ela surgiu e quais as principais expressões de sua existência na história?

Burke: A idéia de vender conhecimentos é muito antiga. Mas a invenção da imprensa escrita no século XV fez surgir um mercado especializado em vender conhecimentos. Então, são mais de 500 anos de história de venda de conhecimentos. E podemos ver um lado bom disso e um lado ruim também. Por razões competitivas, o conhecimento deve estar acessível para mais tipos de pessoas. Isso o popularizou. O lado negativo é que aquilo que não se vende não é impresso. Por isso, atualmente é uma grande vantagem a existência de editoras universitárias, não apenas comerciais, para publicar o conhecimento que não é tão vendável. O único problema é que as editoras universitárias estão se comportando cada vez mais como as comerciais.

Valor: Quais foram as influências do período analisado no livro para a formação da universidade como é concebida hoje?

Burke: É difícil responder isso de maneira simples. A produção acadêmica sempre se transformou no decorrer do tempo. Se falamos sobre as humanidades, por exemplo, estamos sempre usando um vocabulário que é herança dos humanistas do século XV. Naquela época, estudar alguns assuntos pressupunha que a pessoa se transformaria em alguém que teria comportamentos mais humanos. Isso incluía estudar disciplinas como poesia e história, e não incluía estudos como matemática e astronomia.

Valor: A Bolsa de Valores de Amsterdã no século XVII é citada no livro como um importante centro difusor de informações da Europa. Que outras atividades econômicas estiveram relacionadas com a evolução do conhecimento?

Burke: As empresas, já no século XVII, coletavam informações sistematicamente para os negócios do comércio. Uma empresa comercial da Alemanha, por exemplo, recebia relatórios anuais dos escritórios localizados em vários pontos do mundo. Esses relatórios eram usados para a formulação da política da empresa e também tinham suas informações divulgadas, posteriormente, por toda a Europa. Da mesma forma, as companhias precisavam de informações geográficas, então os mapas eram muito precisos, o que fez com que a cartografia se desenvolvesse.

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