8 de mai. de 2003

O pesado jogo dos transgênicos


A Comissão Européia balança sobre a moratória aos OGMs, mesmo diante do caráter irreversível de sua contaminação ambiental e da possibilidade de um punhado de grandes empresas norte-americanas controlarem a agricultura mundial
Por SUSAN GEORGE *

A oposição aos organismos geneticamente modificados (OGMs - transgênicos) repousa sobre diversas constatações: o caráter irreversível da poluição ambiental que eles podem provocar; a vontade de um punhado de grandes empresas de controlar mercados potencialmente gigantescos; a tentativa de controle dos interesses econômicos e políticos norte-americanos sobre a Europa e sobre o resto do mundo, com o apoio ativo da Comissão Européia.

O cultivo comercial dos transgênicos se espalha rapidamente. Em 2000, cerca de 45 milhões de hectares estavam sendo cultivados no mundo, os Estados Unidos representando 68% desse total, a Argentina 23%, o Canadá 7% e a China 1%1 O milho e a soja cobrem mais de quatro quintos dessas superfícies, o colza, o algodão e as batatas seguem bem atrás. A taxa de consumo anual do mercado mundial de grãos cresce mais de 45 bilhões de Euros por ano, mas 80% dos agricultores, sobretudo os do Sul, ainda não desistiram de conservá-los de um ano para o outro e de trocá-los com seus vizinhos ao invés de comprá-los. As transnacionais dos grãos, visam portanto uma tripla expansão: geográfica, de variedade e comercial.

Seu domínio de intervenção ultrapassa o dos grãos: elas produzem e comercializam igulamente herbicidas e pesticidas, e às vezes produtos farmacêuticos. A Monsanto, a Syngenta, a Aventis, a Dupont, a Dow e algumas outras gigantes do setor são todas nascidas de fusões e de aquisições criadoras de sinergias internas. Elas se auto designam como empresas das "ciências da vida", mas seu objetivo é patentear ao mesmo tempo os genes, os grãos e todas as tecnologias associadas a fim de garantir-lhes nada menos do que o controle efetivo da agricultura mundial.

Oligopólio norte-americano
Nos Estados Unidos, antes de colocar uma nova variedade transgênica no mercado, as firmas devem obter o aval do departamento de agricultura (USDA). De 87 requerimentos de "novas variedades" que foram submetidos até 1992, a Monsanto (que se fundiu com a Upjon, a Calgene, a DeKalb e a Asgrow) foi responsável por 45, ou seja, mais da metade. Os dois gigantes seguintes, a Aventis (que absorveu a AgrEvo e a Plant Genetic Systems) e a Syngenta (que se fundiu à Ciba, à Novartis, à Northrup e à Zeneca) foram responsáveis por 18% e 9% dos requerimentos, respectivamente. Se acrescentarmos as duas firmas seguintes (Dupont et Dow), constatamos que nos Estados Unidos cinco empresas controlam quase nove décimos dos grãos transgênicos e também os pesticidas e herbicidas que lhes são associados, sendo a Monsanto líder absoluta. Para esse oligopólio, todos os meios são válidos para combater os opositores dos transgênicos.

Dois pesquisadores da universidade da Califórnia em Berkley, David Quist e Ignacio Chapela, o demonstraram às próprias custas publicando, em novembro de 2001, um artigo na prestigiosa revista Nature2. Eles anunciavam a existência de traços de milho transgênico detectados em variedades de milho indígena mexicanas. Já seria muito grave porque o México é o berço mundial do milho; para proteger este patrimônio genético insubstituível, o governo decretou, em 1998, moratória sobre a produção do milho transgênico, o que aliás não impede as firmas biotecnológicas de possuirem ainda mais numerosos campos experimentais em todo o país. Mas os dois pesquisadores afirmavam também que o DNA geneticamente modificado se fragmentou e se deslocou de uma maneira imprevisível no genoma do milho local atingido. Se ninguém pudesse contestar a primeira afirmação – a contaminação – a segunda constituía uma verdadeira bomba colocando em questão a propaganda da indústria biotecnológica, que pretendia que os genes nunca se deslocam do local preciso onde eles foram introduzidos no genoma. A guerra estava desencadeada.

Campanha virulenta
Em 1997, a Monsanto encontrara-se acuada pela falência por causa de sua campanha a favor dos trangênicos. Para não cometer mais os mesmos erros, ela recorreu aos serviços de uma empresa de relações públicas, o Bivings Group, especialista na manipulação pela Internet. Esta empresa orquestrou às escondidas uma campanha na TV a fim de denegrir os pesquisadores de Berkeley. Ela recrutou cientistas ligados à indústria para contestar seus trabalhos e chegou ao ponto de inventar indivíduos fictícios para agravar o debate3. Esta campanha virulenta trouxe seus frutos e desembocou na decisão sem precedentes da Nature de se retratar pela publicação do artigo incriminado. Neste dia, a revista não publicou resultados de trabalhos de pesquisadores mexicanos que corroboraram várias vezes aqueles de seus colegas de Berkeley.

Ao contrário das Academias de ciências e medicina francesas4, a British Medical Association e a Royal Society britânicas, como muitos outros pesquisadores independentes, inclinaram-se sobre os perigos da cultura de transgênicos em campo5. Está desde então estabelecido que as trocas de pólen entre os transgênicos e plantas cultivadas ou selvagens são correntes. Segundo a cultura e seu tipo de polinização, esta poluição termina bem além dos limites oficiais fixados para "proteger" os campos vizinhos; ela contamina outras espécies e não somente aquelas que lhe são mais próximas geneticamente.

Patrimônio genético em risco
Se os testes em campo de transgênicos se generalizarem, sabemos que a contaminação tornará rapidamente impossível a cultura biológica. Trata-se do fechamento de uma via vital e economicamente promissora para o futuro; trata-se também de recusar ao agricultor a liberdade de escolha. Sabe-se também que os transgênicos, concebidos para resistir aos herbicidas e aos pesticidas, provocam a evolução de super-ervas-daninhas e de super-predadores.

Eles podem invadir o patrimônio genético do qual depende a agricultura e reduzir sua variedade. Em suma, a cultura dos transgênicos, se não for feita com melhor confinamento, constitui uma grave e irreversível irresponsabilidade ecológica.

Assim, no Canadá, onde a produção comercial do colza transgênico teve início há não mais que seis anos, o Centro de pesquisa do ministério da agricultura, em Saskatoon, pode afirmar que "o pólen e os grãos se espalharam de tal maneira que agora é difícil cultivar variedades tradicionais ou orgânicas de colza sem que elas sejam contaminadas". Chegamos a uma situação em que, para tentar entravar as críticas, a Monsanto teve que propor aos agricultores canadenses o envio de equipes para arrancar manualmente o colza transgênico que invadiu os campos onde nunca fora semeado. Selecionado para resistir aos herbicidas, ele se tornou "absolutamente impossível de controlar" segundo um cientista da universidade de Manitoba6. Em suma, as empresas das "ciências da vida" procedem como se Darwin nunca houvesse existido; como se a resistência dos organismos vivos aos pesticidas e aos herbicidas não aumentassem de geração em geração; como se não se tivesse conhecido a experiência desastrosa do DDT. É uma "usina nuclear" biológica que produzirá fatalmente seus Chernobyl.

Famintos dizem não
O cultivo do transgênico, fosse ele justificado por ganhos econômicos, não o seria apenas a curto prazo? Nem isso. Apesar das subvenções que atingem vários bilhões de dólares, os agricultores norte-americanos que se lançaram a esta aventura não apenas perderam muito dinheiro, mas tiveram que enfrentar infestações vegetais ultra-resistentes7. Os únicos e exclusivos beneficiários das culturas transgênicas são as grandes firmas da biotecnologia e seus sustentáculos políticos nos Estados Unidos e na Europa.
Têm os famintos o direito de se fazerem de difíceis? Algumas mídias se escandalizaram com a atitude da Zâmbia, que recusou milho contendo transgênicos fornecido pelo programa de ajuda alimentar norte-americana. Estas mídias, no entanto, omitiram a explicação de que os camponeses zambianos teriam guardado inexoravelmente uma parte desta ajuda – fornecida em grãos – para suas semeaduras (se o milho fosse moído, ou pudesse sê-lo pelo governo, o problema não teria acontecido). Os zambianos queriam simplesmente evitar uma poluição irreversível de suas culturas a fim de continuar a poder exportar para a União Européia. A ajuda alimentar norte-americana é raramente fornecida sem segundas intenções comerciais.

Mesmo se um pequeno país africano não é coisa que se negligencie, a Europa permanece o mercado privilegiado para os produtos transgênicos, principalmente para o milho e a soja. Em 1999, a União Européia pôs em prática uma moratória contra as importações de transgênicos8 e, desde então, os Estados Unidos ameaçam traduzi-la diante do Órgão de Resolução de Disputas (ORD) da Organização Mundial do Comércio (OMC), o que constituiria também uma advertência para os países que, como o Brasil e o México, adotaram um expediente similar. Lançado na surdina para não dar armas aos pequenos Verdes durante as eleições francesas e alemãs de 2002, o debate chegou agora ao salão oval da Casa Branca9.

Partidários europeus
Depois de ter denunciado como "imorais", em janeiro último, as medidas européias e de ter anunciado sua intenção de lançar mão do ORD, Robert Zoellick, representante do presidente dos Estados Unidos para o comércio internacional, precisou engatar a marcha à ré, já que o departamento de Estado e a assessoria de Bush não queriam abrir um front suplementar com os europeus em plena crise diplomática relativa ao Iraque.

Estas tergiversações haviam sido fortemente mal recebidas no Congresso, onde o presidente da comissão de finanças do Senado, eleito pelo Estado agrícola do Iowa, Charles Grassley, invocando os 300 milhões de dólares em vendas perdidas na Europa, declarava, no início de março, que "o status quo neste domínio é totalmente inaceitável" e que "o governo deve fazer alguma coisa e fazê-lo depressa"10.

Os desacordos no interior do executivo norte-americano tratam unicamente do método e de modo algum do objetivo: nem moratória nem regras sobre a traçabilidade e etiquetagem. Se a via da diplomacia continua ainda aberta, é também porque Washington encontra sinais encorajadores na Comissão Européia. Sabe-se que Pascal Lamy, comissário encarregado do comércio, é um aguerrido partidário – e de longa data – da retirada da moratória. Ele estima que, do ponto de vista europeu, ela pode ser substituída por regras sobre a traçabilidade e a etiquetagem, suscetíveis, segundo ele, de serem aceitas pela OMC.

Tudo pela biotecnologia
Uma vez que estas regras sejam estabelecidas, a Comissão poderia atacar diante da Corte de Justiça de Luxemburgo os Estados membros que se recusassem a retirar a moratória. É em particular o que dá a entender o comissário da agricultura, Franz Fischler, dirigindo-se aos seus parceiros norte-americanos: "Eu posso realmente lhes garantir que nós, da Comissão, faremos tudo para demonstrar que falamos seriamente quando dizemos que somos a favor da biotecnologia"11.

Fischler é efetivamente capaz de fazer "tudo" pelos transgênicos. Prova disso são as espantosas reflexões sobre a "coexistência" entre culturas geneticamente modificadas e agricultura convencional e biológica que ele apresentou no dia 6 de março a seus colegas da Comissão, e que serve de base para uma mesa redonda, prevista para o dia 24 de abril, com todas as partes interessadas. Desprezando todos os dados conhecidos formulados por fontes independentes dos industriais, especialmente as que foram citadas mais acima, o comissário considera que esta "coexistência" não é um problema ambiental, mas levanta apenas questões jurídicas e econômicas. Substancialmente, ele pensa que os agricultores não transgênicos são quem devem se encarregar das medidas de proteção contra os riscos de contaminação das culturas transgênicas: o pagamento não estaria então a cargo do poluidor, mas do poluído... E, invocando o princípio do subsídio, Fischler afasta a possibilidade de qualquer legislação comunitária coercitiva. Fica-se confuso diante de uma tal obstinação na defesa das transnacionais norte-americanas por parte da Comissão dita "européia". E surpreendemo-nos a pensar que a luta contra este complexo político-genético-industrial se torna realmente uma obra de salubridade pública.

*Vice-presidente do Attac; autora, com Martin Wolf, de Pour ou contre la mondialisation libérale, Grasset, Paris, 2002.

1 - Deborah B. Whitman, “Genetically Modified Foods: Harmful or Helpful?" Cambridge Science Abstracts, abril 2000.
2 - David Quist et Ignacio Chapela, “Transgenic DNA introgressed into traditional maize landraces in Oaxaca, Mexico”, Nature, Londres, vol. 4141, Londres, 29 novembre 2001.
3 - Lire l'enquête de George Monbiot, “The Fake Persuaders”, The Guardian, Londres, 29 mai 2002.
4 - Lire Bernard Cassen, “Os cientistas partidários dos transgênicos ”, Le Monde diplomatique, février 2003.
5 - The Royal Society, Genetically Modified Plants for Food Use, Londres, setembro 1998; The British Medical Association, Board of Science, The Impact of Genetic Modification on Agriculure, Food and Health: an Interim Statement, Londres, 1999; BMA, The Health Impact of GM Crop Trials, Londres, novembro 2002.
6 - Canadian Broadcasting Company, site CBC News, “Genetically modified canola becoming a weed”, 22 juin 2002.
7 - É o que se conclui de um relatório da Soil Association de 16 de setembro septembre 2002, citado no documento coletivo OGM: Opinion Grossièrement Manipulée, Inf'OGM, Fundação Charles Léopold Meyer pelo progresso do homem, Paris, outubro de 2002.
8 - 19 autorisações de OGM foram assinadas até esta data.
9 - Para um detalhado das primeiras etapas desta campanha, ler "Vers une offensive américaine sur les OGM", Le Monde diplomatique, maio 2002.
10 - Financial Times, Londres, 6 mars 2003.
11 - "U.S. postpones biotech case against EU, enlists allies in WTO", Inside U.S. Trade, (lieu de publication) 7 février 2003.

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