3 de fev. de 2003

A luta pelo pós-Saddam Hussein
Duas correntes discutem o futuro político do Iraque após a queda de Saddam Hussein: uma delas, a dos “pombos”, é a do Departamento de Estado e da CIA; a outra, dos “falcões”, é a do vice-presidente norte-americano e dos militares


Isam Al-Khafaji*

“A mãe de todos os grupos de trabalho”: é esse o nome irônico que foi dado à reunião de 32 opositores iraquianos em Wilton Park. Assim que chegaram, receberam um pequeno livreto com um breve histórico daquela mansão no campo onde seriam discutidos os grandes princípios destinados a orientar a era pós-Saddam. É difícil não perceber algo de simbólico na escolha do lugar: Wilton Park abrigou os alemães e ingleses encarregados de definir a transição democrática na Alemanha pós-nazista. Os cínicos salientariam, sem dúvida, que os primeiros alemães que participaram dessas discussões em Wilton Park foram os prisioneiros de guerra encarcerados na Grã-Bretanha...

Oficialmente, “a mãe de todos os grupos de trabalho” chama-se Grupo de Trabalho dos Princípios Democráticos e representa um dos 18 grupos de políticos e especialistas iraquianos que se reúnem sob os auspícios do Departamento de Estado norte-americano com o objetivo de formular as perspectivas de futuro, nas respectivas áreas, para um Iraque pós-Saddam: estrutura do governo de transição, questões do petróleo e da economia, papel dos meios de comunicação e das organizações da sociedade civil.

“Pombos” e “falcões”
Pondo de lado os aspectos técnicos dos assuntos examinados – e apesar das tranqüilizadoras entrevistas coletivas sobre as relações civilizadas entre iraquianos de origem e convicções tão distintas – o simples fato de organizar esses encontros traduz de forma clara os dilemas que enfrenta o governo norte-americano no Iraque. Prova disso são as acaloradas discussões entre o Departamento de Estado e a CIA, de um lado, e o vice-presidente e os neoconservadores do Pentágono e do Congresso, de outro.

Isolados, mergulhados num silêncio absoluto, observam-se um assessor especial de Paul Wolfowitz, subsecretário da Defesa, e um funcionário graduado do gabinete do vice-presidente, Richard Cheney. Seria a missão deles espionar seus superiores... ou seus adversários do Departamento de Estado? Pergunta difícil de responder. É claro que os dois pontos de vista que se chocam no governo norte-americano referem-se exclusivamente ao perfil dos dirigentes e do sistema político a ser implantado no Iraque da era pós-Saddam e aos meios a serem utilizados para impor a ordem. Mas representam uma importância capital para o futuro da estratégia norte-americana no Oriente Médio. Embora seja antiga, essa rivalidade foi institucionalizada sob a atual presidência. O Departamento de Estado e a CIA adotam uma posição realista (“pombos”) visando à mudança do regime no Iraque mais como a conclusão do retorno a uma estabilidade regional perturbada pelo presidente Saddam Hussein. No outro extremo, o Pentágono, apoiado por grupos influentes no Congresso, pelo vice-presidente e pelo Conselho de Segurança Nacional, adota uma posição ideológica (“falcões”): a mudança deverá assinalar o início de uma “onda democrática” com o objetivo de transformar o Iraque em ponta-de-lança da democratização da região, transformando-o num oásis liberal e pró-americano.





Os perigos de uma revolta popular
As origens dessa rivalidade datam de meados da década de 80, quando um setor influente dos governos Reagan e Bush pai, apoiado por um exército de “pesquisadores”, propagandistas, empresários e políticos, fez consideráveis esforços e gastou bastante dinheiro para levar ditaduras nacionalistas – em particular a de Saddam Hussein – a se aliarem estreitamente aos Estados Unidos para combater o fundamentalismo e garantir o abastecimento permanente de petróleo ao Ocidente1.

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Esse raciocínio permaneceria vigente após o final da guerra Irã-Iraque (1988), inclusive quando o presidente Saddam Hussein passou a ameaçar de forma direta os interesses norte-americanos. Até persistiria após a guerra do Golfo, a derrota do Iraque e a revolta popular provocada, na primavera de 1991, pelo apelo de Bush pai ao povo iraquiano para que “tomasse o futuro em suas mãos”. Os ex-defensores de uma aliança com Bagdá ainda teriam um papel-chave: conseguiram convencer o governo a não só não apoiar essa Intifada, mas – num momento em que as tropas aliadas ocupavam uma sexta parte do país – ficar em posição de observador enquanto as tropas do presidente Saddam Hussein esmagavam a revolta, provocando, pelo menos, 60 mil mortes. Na opinião desses assessores, uma revolta popular poderia acabar levando a conseqüências indesejáveis: os interesses norte-americanos seriam mais bem protegidos por meio de uma mudança limitada, com a eliminação do ditador e de seu círculo mais próximo, mas mantendo, na prática,o regime.

As divergências internas
Durante a última década, cada um desses pontos de vista encontrou receptividade por parte de sócios iraquianos. Os “realistas” apostam na Aliança Nacional Iraquiana (Iraqi National Accord – INA), composta por ex-membros do Partido Ba’ath, que propõem um golpe de Estado restrito; os ideólogos neoconservadores optaram pelo Congresso Nacional Iraquiano (Iraqi National Congress – INC), uma organização que propaga abertamente sua inspiração liberal e pró-ocidental. Esses movimentos, assim como outras facções menos importantes e alguns membros da oposição, não são, evidentemente, meros agentes da vontade norte-americana. A composição de cada organização reflete, em grande parte, as profundas mudanças implantadas na sociedade pelo regime ba’atista.

O INC, por exemplo, é composto principalmente por pessoas que devem sua ascensão social, econômica e/ou política aos regimes pré-republicanos (a queda da monarquia deu-se em 1958), enquanto a direção da INA provém da camada que se consolidou durante os regimes republicanos, em especial o do Partido Ba’ath. Se as primeiras nada têm em comum com a atual elite no poder, as pessoas que militam na INA afastaram-se do Partido Ba’ath, mas ainda partilham, em grande parte, do estado de espírito e dos métodos daqueles a quem devem sua ascensão.

Trinta anos de doutrinação
O futuro do Iraque irá depender da maneira pela qual o regime do presidente Saddam Hussein sair de cena. Uma série de ataques devastadores contra a infra-estrutura e a população civil do país teria como efeito, por exemplo, fornecer à propaganda ba’atista o ensejo de mostrar que os Estados Unidos tomam como alvo o povo iraquiano e a Saddam Hussein a oportunidade de se apresentar como defensor da nação? Ou, ao contrário, daria ao ditador a impressão de se agarrar ao poder a qualquer custo? E se a bala de um general der o tiro de misericórdia no regime, ou se este sucumbir a uma revolta popular? A resposta a essas perguntas irá depender da euforia ou do abatimento dos iraquianos comuns, de sua confiança no novo regime e, portanto, de sua opção por fazerem eles próprios justiça nas ruas ou, ao contrário, confiarem essa tarefa aos novos dirigentes.

Mas como poderá um governo de transição impor sua vontade à população? Nada sugere que a lealdade das forças armadas para com um novo regime seja garantida por antecipação. Mais de 30 anos de doutrinação e de isolamento do mundo exterior tornarão muito difícil a comunicação entre um novo governo e os militares. O súbito colapso do regime de terror irá oferecer uma oportunidade para as pessoas se descontraírem sem medo de represálias. Ainda mais inquietante é a existência de enormes redes de tribos, clãs e interesses que alimentarão permanentemente o receio de um golpe de Estado2.

O modelo do Japão pós-1945
Os membros da oposição iraquiana que defendem, com o beneplácito do Departamento de Estado, um “cenário leve”, partem do que consideram “normas culturais e estruturas existentes”. Em vista da história turbulenta do país, do contexto regional e da pesada herança ba’atista, uma transformação democrática significaria um luxo. Prioriza-se, portanto, a estabilidade, com um retorno mínimo à normalidade: à primeira vista, este cenário reduziria ao mínimo a ingerência estrangeira, relembrando, dessa forma, a política colonial britânica da década de 20. Isto porque se trataria de dar muito mais poder aos grandes chefes tribais nos assuntos internos, assim como, para contribuir para a manutenção da ordem no Sul, de convocar as milícias de oposição islâmica xiitas, sob a direção da Assembléia Suprema da Revolução Islâmica no Iraque, fundada e dirigida pelo aiatolá Mohammad-Baqer Hakim. Paralelamente, sob o pretexto de preservar a estabilidade, as principais estruturas do regime ba’atista e muitos de seus dirigentes seriam mantidos em seu lugar.

O INC, por seu lado, parte do princípio de que o sistema ba’atista pertence à família dos regimes nazistas. Seria necessário, portanto, começar por “desba’atizá-lo” e desmantelar as infra-estruturas do regime. Daí decorre a necessidade de um considerável apoio material dos Estados Unidos, que teriam, conseqüentemente, que permanecer no Iraque por um período provisório relativamente longo para manter a ordem e reestruturar as instituições. Uma milícia composta por exilados constituiria o núcleo das futuras forças armadas. Em resumo, seria o caso de tomar como modelo o Japão do pós-1945 e sua transformação num Estado democrático. Esse cenário dos “falcões” contém, no entanto, uma importante contradição entre fins e meios.

Contradição entre os fins e os meios
O projeto de transformar o Iraque no Japão do Oriente Médio, pacifista e democrático, se insere numa estratégia visando a triplicar as exportações de petróleo do país, que passariam de 2,3 milhões de barris por dia para cerca de 10 milhões. Mas esse objetivo grandioso não parece nem um pouco compatível com a pacificação e democratização do país: aumentar a receita do petróleo significaria alimentar as raízes da tirania. Por outro lado, triplicar a produção provocaria o colapso dos preços e poria em perigo os interesses de todos os outros países exportadores de petróleo. Ora, o Iraque é o único país da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) que não dispõe de acesso marítimo livre – os próprios portos do Golfo estão ao alcance da artilharia iraniana. Países como o Irã e a Arábia Saudita não se conformariam serenamente com uma mudança que os ameaçaria de falência. Portanto, um cenário desses incentivaria Bagdá a se militarizar e contar com uma considerável presença norte-americana. Em ambos os casos, os lucros previstos com o triplicar das exportações de petróleo (hipotéticos, aliás, considerando-se o provável colapso dos preços) seriam dilapidados em despesas militares e importações.

A experiência histórica demonstra que as estruturas da sociedade seguem seu próprio cenário de transformação. Um poder interno – ou externo – terá uma tarefa difícil pela frente se tentar impor um programa político sob o pretexto de modernização ou de respeito pelas culturas tradicionais, pois, em última instância, será a lógica interna que triunfará, vingando-se daqueles que a terão querido violentar. Milícias armadas, que não seriam o desejo de importantes parcelas da população e não seriam compreendidas como garantias de uma função legítima, teriam a tendência de usurpar o poder, difundir o terror e reforçar o domínio pela força de seus mandantes – ao invés de se tornarem o núcleo de um futuro exército. Num país sem estruturas legais e sem tradição de representação, essas milícias só poderiam vir a fraudar o processo eleitoral, objetivo de tantas esperanças, e seriam difíceis de integrar ao corpo político da nação.

Clientelismo do Estado benfeitor
Somente uma recomposição das forças militares e policiais teria a capacidade de impor a autoridade do Estado e a ordem pública. Mas dificilmente isso viria a ocorrer na seqüência imediata da queda da ditadura. A reabilitação de um aparelho militar decomposto e aniquilado representaria problemas, assim como sua transformação de uma força politizada e de opressão numa instituição nacional reconhecida pelo povo como garantia legítima da ordem pública e da segurança nacional.

O exército e a polícia poderiam ganhar um certo respeito valorizando sua marginalização e humilhação sob o regime ba’atista. Após o final da guerra com o Irã, os privilégios que eram maciçamente concedidos aos oficiais de carreira começaram a desaparecer e generais com uma folha de serviços impecável foram rebaixados ou punidos. Seja como for, para poder cumprir seu dever, as forças armadas oficiais deverão ser reconhecidas como instituições de um Estado legítimo.

Ora, no Iraque contemporâneo, a legitimidade raramente teve por origem uma Constituição democraticamente aprovada. Decorreu quase sempre do clientelismo do Estado, da capacidade deste último aparecer aos olhos de parcelas importantes da população como um benfeitor.

A classe média devastada
Um primeiro passo para a legitimação de um regime pós-Saddam seria o reconhecimento pelo mundo exterior e a aceitação do Iraque entre as organizações internacionais. Mas isso não bastará para que a sociedade reconheça o regime: será necessário construir um delicado equilíbrio entre, por um lado, pessoas representativas da população – cujas qualidades morais e políticas lhes permitam impor o respeito e a confiança – e, por outro lado, dirigentes capazes de conseguirem a adesão do exército e da polícia. E essa tarefa não será fácil, pois num momento de abalo revolucionário o povo cria grandes expectativas. Quanto mais uma pessoa ou uma entidade se distanciar do finado regime, maior será o seu crédito junto à população. No entanto, por definição, as autoridades que souberem adotar esse “distanciamento” nem sempre serão aquelas que melhor conhecem a engrenagem do Estado. Em sua maioria, ignoram totalmente os mecanismos que constituem as alavancas do poder.

Na ausência de uma revolução plena e total que faça surgir suas próprias instituições e seus próprios dirigentes, a queda do regime acarretará um interregno conflituoso. Se parece possível a explosão de uma revolta espontânea, imediatamente após – ou mesmo antes – de um ataque militar contra o Iraque, a fragmentação e o empobrecimento da cultura política tornam, por seu lado, praticamente impossível um desfecho realmente revolucionário. Mais de uma década de sanções destruidoras e três décadas de um regime tirânico fizeram uma devastação entre as camadas instruídas – as chamadas classes médias –, das quais poderiam emergir lideranças novas e esclarecidas. Após esse longo período de um sofrimento indescritível para milhões de iraquianos, ninguém se deverá surpreender se alguns desses velhos açougueiros se transformarem, subitamente, em paladinos das idéias da moda, arautos do liberalismo, do livre câmbio e do pró-americanismo.

(Trad.: Jô Amado)
* Pesquisador e professor na Universidade de Amsterdã

1 - Ler Alain Gresh, “Objetivo, Bagdá”, Le Monde diplomatique, setembro de 2002.
2 - Ler, de Faleh A. Jabar, “Os segredos da sobrevivência do regime iraquiano”, Le Monde diplomatique, outubro de 2002.

Extraído do LMD Brasil, link aqui.

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