19 de fev. de 2003

O fosso transatlântico de mídia
Paul Krugman

Tem havido muita especulação sobre por que a Europa e os Estados Unidos subitamente passaram a se estranhar. Mas não tenho visto discussão de um ponto óbvio: temos visões diferentes em parte porque vemos notícias diferentes. As enormes manifestações de sábado confirmaram pesquisas que mostram uma profunda desconfiança no governo Bush e ceticismo sobre a guerra contra o Iraque em todas as principais nações européias, qualquer que seja a posição do governo local.

Então por que os outros países não vêem o mundo como vemos? A cobertura jornalística é uma boa parte da resposta. As diferenças entre as formas de reportar notícias de europeus e americanos é uma demonstração disso. Pelo menos, se comparada com suas congêneres estrangeiras, a “mídia liberal” dos EUA é marcadamente conservadora — e neste caso, belicosa.

Não estou falando da mídia impressa. Há diferenças, mas os jornais mais importantes de EUA e Grã-Bretanha pelo menos parecem estar falando da mesma realidade. A maioria das pessoas, no entanto, recebe as notícias pela TV, e aí as diferenças são imensas. A cobertura das marchas de sábado foi um lembrete da extensão em que os canais por assinatura nos EUA parecem estar falando de um planeta diferente do retratado pela imprensa estrangeira.

O que alguém acompanhando as TVs por assinatura teria visto? No sábado, os âncoras da Fox descreveram os protestos em Nova York como as “manifestações de sempre”. A CNN, no dia seguinte de manhã, pôs como manchete no site da rede na internet: “Protestos antiguerra deleitam Iraque”, com fotos mostrando marchas em Bagdá, e não em Londres ou Nova York.

Por meses, as duas maiores TVs por assinatura dos EUA têm agido como se a decisão sobre a invasão do Iraque já tivesse sido tomada, e assumiram como tarefa preparar o público americano para a iminente guerra.

Por isso não é de surpreender-se que o público esteja meio confuso sobre a distinção entre o regime iraquiano e a rede terrorista al-Qaeda. Pesquisas mostram que a maioria dos americanos acha que alguns ou todos os seqüestradores de 11 de setembro eram iraquianos, enquanto muitos acreditam que Saddam Hussein esteve por trás dos atentados, algo que Bush nunca disse. E como muitos americanos acreditam que a necessidade de guerra contra o Iraque é óbvia, acham que os europeus que não concordam são covardes.

Os europeus, que não vêem as mesmas coisas na TV, estão muito mais inclinados a se perguntar por que o Iraque — e não a Coréia do Norte, ou a al-Qaeda — se tornou alvo americano. É por isso que tantos deles questionam os nossos motivos, suspeitando que é tudo por petróleo.

Há duas possíveis explicações. Uma é que a imprensa européia tenha um preconceito antiamericano que a leve a distorcer as notícias. A outra é que alguns órgãos da mídia americana — trabalhando num ambiente em que qualquer questionamento da política externa é tachado de impatriótico — assumiram como tarefa vender a guerra e não apresentar uma mistura de informações que poderia pôr em cheque sua justificativa.
PAUL KRUGMAN é colunista do New York Times

Publicado no O Globo em 19 de fevereiro de 2003

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