31 de jan. de 2003

DOSSIÊ IRAQUE
O grande salto para trás

Referência cultural do mundo árabe, o Iraque vem assistindo à devastação de boa parte de sua história pelo boicote imposto pelas Nações Unidas em 1991: aumento da mortalidade infantil, do analfabetismo, da evasão escolar, da criminalidade, da corrupção...

“Nossas tropas agirão de maneira a que o Iraque seja mandado de volta à era pré-industrial.” Foi com essas palavras que James Baker, secretário de Estado norte-americano de 1990 a 1991, preveniu seu colega iraquiano, Tarek Aziz, na véspera do ataque dos aliados. Os bombardeios maciços e a ofensiva terrestre das primeiras semanas do ano de 1991 foram, sem dúvida, um golpe muito duro – não só para as forças armadas iraquianas, mas também para a infra-estrutura do país. De centrais elétricas a adutoras de água, quantos objetivos civis não foram considerados “legítimos”? No entanto, com os recursos de sua riqueza em petróleo, o Iraque teria podido se recuperar rapidamente. Os jornalistas que visitaram o país em 1992-1993 ficaram surpreendidos pela engenhosidade com que as infra-estruturas haviam sido consertadas.

O que os bombardeios intensivos não haviam conseguido, mais de uma década de boicote iria conseguir. Os consertos improvisados não eram, evidentemente, uma solução de longo prazo para a reconstrução. O país teria que importar máquinas e materiais indispensáveis, o que lhe foi interditado. Em 2003, o Iraque funciona à base de equipamentos com vinte, e até trinta, anos de uso. Com terríveis conseqüências para a população...

Ninguém pode ter certeza absoluta de que o regime de Saddam Hussein tenha abandonado seu programa de armas de destruição em massa, o que era o objetivo declarado do Conselho de Segurança e sua Resolução 687. Por outro lado, é óbvio que o texto que prolongou o boicote, decidido no dia 2 de agosto de 1990, levou o país e sua população de volta à era pré-industrial. Como salienta a pesquisadora Sarah Graham-Brown, o Iraque “ganhou o perfil de um país pobre em termos de indicadores mensuráveis, principalmente no que se refere à taxa de mortalidade infantil1”.

É comum ver, na televisão, imagens de crianças morrendo nos hospitais por falta de assistência médica e de medicamentos. No entanto, se amanhã se puser fim às sanções, nem assim os problemas serão resolvidos. Quanto tempo será necessário para formar uma nova geração de médicos? Os que atualmente estudam na faculdade foram privados dos melhores professores, que foram para o exterior em busca de melhores salários e de um futuro para seus filhos; os estudantes não têm qualquer contato com o mundo exterior e praticamente não podem fazer estágio em outros países; nem sequer lhes é possível ler revistas médicas estrangeiras, pois estas foram proibidas pelos países ocidentais sob o pretexto de que este ou aquele artigo poderia servir... para fabricar armas bacteriológicas.

Na década de 80, o Iraque não só dispunha de um sistema de saúde excepcional para um país do hemisfério Sul, como sua população se orgulhava dos progressos na área da educação. A revolução de 1958, que pusera fim à monarquia, incentivara um enorme esforço na educação primária. O aumento dos preços do petróleo, a partir de 1973-1974, iria incentivar uma extensão da escolaridade secundária e superior, da qual as moças foram as principais privilegiadas. O boicote pôs fim a todos esses avanços. O índice de alfabetização, que passara de 52%, em 1977, para 72%, em 1987, tornou a cair. De acordo com um relatório da Unicef do início do ano de 20022, apenas 75% das crianças entre 6 e 11 anos de idade freqüentam a escola primária – 31,2% das meninas e 17,5% dos meninos não vão à escola, preferindo vagar pelas ruas à cata de alguns dinares para ajudarem suas famílias a comer. Mesmo os que freqüentam a escola enfrentam situações terríveis: ausência de livros, de carteiras, de quadros; professores que não lhes dão a devida atenção porque são obrigados a ter um segundo emprego; prédios velhos e com alunos demais etc. O destino dessa geração perdida comprometerá o futuro do país, mesmo que o presidente Saddam Hussein seja deposto amanhã.

Durante muito tempo, o Iraque representou um centro da vida cultural árabe. É verdade que a ditadura implantada a partir de 1968 forçou muitos intelectuais a emigrarem, mas seus poetas, escritores e pintores tinham uma reputação internacional. A leitura era uma das atividades preferidas pela classe média. Atualmente, as pessoas vendem seus livros nas ruas de Bagdá para poderem sobreviver. Genericamente, se poderia dizer que toda a vida social foi gangrenada pelo boicote e pelas suas conseqüências. A criminalidade deu um salto em frente; a corrupção tornou-se endêmica; a volta às solidariedades tribais, incentivada pelo poder, ameaça a unidade nacional.

O povo iraquiano é o grande ausente no atual debate sobre a guerra. Uma vez mais, as decisões são tomadas em função de análises geopolíticas e de interesses relacionados com o petróleo. Quem teria podido prever, na primavera de 1991, quais seriam, para a população, as conseqüências do boicote das Nações Unidas? Em novembro de 2002, 280 bispos e cardeais denunciaram as conseqüências, imprevisíveis, para a população iraquiana de um novo conflito no Golfo. Quem ouvirá esse apelo?

(Trad.: Jô Amado)

1 - Ler, de Sarah Graham-Brown, Sanctioning Saddam, ed. I.B. Tauris, Londres, 1999, p. 183.
2 - The situation of Children in Iraq, Unicef, fevereiro de 2002.

Extraído (ou subtraído) do Diplô Brasileiro. O link está aqui

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